Num futuro próximo os seres humanos poderão andar na rua com corpos artificiais comprados. Estes avatares transmitem, aos humanos que através deles se projectam, as mesmas sensações sem os prejuízos para a saúde da utilização do próprio corpo, sejam estes prejuízos a transmissão de doenças ou os riscos de cancro provenientes do tabaco.

Uma das utilizações mais práticas será pelos agentes de segurança que assim evitam colocar-se verdadeiramente em situações perigosas. Estes corpos podem manter a vitalidade e a força de uma pessoa de vinte anos, ainda que o seu utilizador seja um barrigudo de sessenta, sedentário, mas que na sua mente carrega os largos anos de experiência na profissão.

Claro que a utilização destes corpos não se restringe ao que é lícito e laboral. Algumas pessoas usam-nos por questões profissionais, mas outros para esconderem o seu verdadeiro aspecto (fruto de inseguranças e ansiedades), para não serem reconhecidos ou para ostentar um aspecto mais atraentes num encontro romântico.

Este volume apresenta duas histórias, sendo que a que ocorre temporalmente antes é apresentada depois. Na primeira história começam a aparecer corpos estragados propositadamente utilizando electricidade. Sabe-se apenas que quem os estraga está contra a intensa utilização dos corpos falsos em detrimento de sair de casa com os corpos imperfeitos mas verdadeiros.

O principal suspeito? Um líder religioso que terá, na sua agenda, o extermínio destes corpos e terá sido, no passado, responsável por revoltas violentas. Ainda que os discursos coincidam, as peças parecem não corresponder totalmente.

A segunda história centra-se, exactamente, nos eventos que deram origem às revoltas violentas lideradas pelo líder religioso, começando com um assassinato de um homem pobre, um sem abrigo, que não tem dinheiro para um corpo falso. O assassinato ocorreu às mãos de três adolescentes que usavam os corpos falsos dos pais.

Para além das questões associadas à identidade questionável de quem controla o corpo, este assassinato destaca as questões éticas da utilização de corpos falsos (e adultos) por menores de idade. Pondo de lado o novo produto destinado aos mais jovens, a empresa que cria corpos falsos resolve estas questões na origem, mostrando-se uma empresa responsável que coloca os interesses da comunidade acima dos lucros.

Intercalando cada capítulo com um bloco informativo sobre a realidade onde decorrem as duas histórias (por vezes notícias de jornal ou artigos científicos, outras mostrando os folhetos informativos que são distribuídos para publicitar os corpos falsos) The Surrogates apresenta um futuro cinzento. Não me parece que seja cinzento e soturno por alguma catástrofe, mas como reflexo do afastamento da realidade, resultado directo do uso dos corpos.

Mas, claro, nem tudo é negativo. Os artigos disponibilizados mostram as componentes associadas à segurança nas profissões perigosas (polícias, exército, construção civil, etc) bem como ao desaparecimento de descriminação. O corpo que cada um apresenta pode ser de um género e de características físicas diferentes, louro ou moreno conforme desejado, e desta forma concorre-se a qualquer emprego sem que os empregadores saibam as verdadeiras características físicas das pessoas.

Se por um lado os corpos proporcionam a vivência de uma pessoa saudável e jovem, provocam, também, um sentimento de desligar da realidade, uma vivência inconsequente onde as pessoas assumem outras personalidades, vivendo farsas e afastando-se do contacto pessoal e directo com outras, realizando experiências que não ousariam em primeira mão.

Ainda que a postura de um terrorista e de um líder religioso instigador de revoltas sejam demasiado drásticas, a verdade é que nem todas as transformações fornecidas pela tecnologia se revelam positivas. De ambiente que recorda clássicos de ficção científica como Blade Runner, ou policiais noir, questiona a humanidade não pela apresentação de entidades artificiais mas pela apresentação de entidades humanas que se tornam artificiais.