Esta é a revista da Bertrand que é distribuída gratuitamente nas livrarias. Não é, assim, de estranhar que metade do espaço seja ocupado com publicidade, entre artigos para livrólicos (sacos de tecido e sabonetes) e livros (entre os livros da semana e os destaques para uma das secções, desde a literatura lusófona à gastronomia).
Então, mas o que contém a restante metade da revista? Bem, nesta edição começamos com uma Ode aos Pores do Sol por Hayao Miyazaki, seguindo-se uma sucessão de textos sobre o tema da revista – O Futuro Precisa de Nós? Esta frase é uma alusão aos avanços recentes da Inteligência Artificial, dando o mote para vários textos.
O primeiro é da autoria de um Managing Director da Bertrand, Elísio Borges Maia. O texto usa múltiplas referências a outros textos, começando com Bill Joy, passando por Stephen Hawking e prosseguindo com Ray Kurzwell e Rodney Brooks. Referem-se sobretudo alertas e riscos para uma IA, assumindo, felizmente que as actuais IA não o são verdadeiramente, faltando-lhes muito para atingirem outro nível de entendimento. É um texto de alerta que termina com várias situações menos positivas que decorreram para tentar demonstrar que a IA vai ter impacto em todos.



A Inteligência Artificial e a segunda derrota de Prometeu, é o texto do filósofo e professor Viriato Soromenho-Marques que começa pelos Riscos Existenciais (militarização, desinformação, degradação epistémica, alienação, concentração de poder, fins próprios emergentes, fraude e comportamentos de procura de poder) passando para O Veneno da Suspeita na Esfera Cultural, com as dificuldades na identificação de plágio, ou a forma como os textos submetidos nas editoras podem ter de ser submetidos a validações adicionais (não vá terem origem numa IA).
A dignidade humana resistirá, cada vez mais, na nossa capacidade individual de recusa e resistência, preservando a nossa sanidade mental. A integridade ética dos criadores, em sentido amplo, reforçará a coragem de recuperarmos na política o espaço de cidadania que nos tem sido roubado.
O texto de Marisa Sousa é mais informativo, denominando-se Os Sistemas de Linguagem Natural. O nome é relativamente comum. O artigo começa com umas breves configurações e apresenta os eventos mais marcantes, desde 2015, sobre a IA, bem como algumas curiosidades e informações interessantes – o primeiro livro criado com recurso a IA, as falhas e os riscos mais frequentes, o desenvolvimento de medicamentos ou como saber que um texto foi escrito pelo CHATGPT. Existe uma breve referência a Minority Report na secção de Prevenção de crimes, e várias menções (com fontes) a notícias relevantes para o tema. Após estes três textos, seguem-se sugestões de livros que podem ajudar na compreensão da IA e o que pode mudar no nosso mundo.



E eis terminado o foco na IA. É curioso que todos os textos parecem cautelosos, ou até receosos do futuro com IA. E ainda que existam vários motivos para tal, é estranho que numa revista sobre livros, não se tenha aproveitado mais para explorar trabalhos de ficção que criam cenários onde a IA existe. Nalguns, o fim é catastrófico, mas outros é uma utopia.
É sobretudo curioso que nenhum destes textos se foque mesmo nas vantagens (o último refere algumas de forma tangencial) ou no porquê da humanidade querer desenvolver tal coisa. Falta a visão de a IA como ferramenta.
Ultrapassando o tema da IA, a revista apresenta outros artigos interessantes – Prémio Pulitzer Ficção 2023, A Escrita do Dicionário de Lugares Imaginários (uma delícia de publicação), A Ilha dos Amores e Outros Lugares Imaginários das literaturas portuguesa e brasileira. Neste último texto encontramos alguns exemplos de ficção especulativa – Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa (livro publicado pela Saída de Emergência há mais de 10 anos) ou Aventuras Maravilhosas de João sem Medo, Os Ossos do arco-íris.



Entre textos mais pesados como Mário Cesariny, o homem que se barbeava com ódio (em referência ao centenário), “oh, como a política seria apaixonante sem aqueles que a fazem”, ou uma entrevista a João Tordo, outra a Brigitte Giraud ou a Victoria Belim, encontramos outros mais leves como 6 curiosidades sobre Uma Casa feita de Doces de Jennifer Egan, Lançamento do prémio literário Bertrand para autores Lusófonos, 3 coquetéis para mulheres literárias.
Na sua totalidade, o conteúdo para além do catálogo de Verão é de boa qualidade. Tem entrevistas interessantes e artigos relevantes. Senti, no entanto, alguma falta de coesão ou de direcção a nível global. Ainda que a capa refira apenas o foco na Inteligência Artificial, decerto os artigos sobre Lugares Imaginários seriam dignos de destaque, bem como algumas das entrevistas. Senti, também, falta de alguma diversidade nas autorias – temos as entrevistas, mas decerto o convite a mais personalidades seria bem recebido pelas mesmas, proporcionando outro nível de conteúdo.
