De R. F. Kuang tem-se falado muito de Babel ou da sua trilogia A Guerra das Papoilas. Mas este Impostora, que tem pouco de ficção especulativa, é genial em execução. E não, ainda não li o Babel. Mas entre a trilogia de fantasia e este volume nota-se um vincado progresso em termos de qualidade de escrita, pelo que a autora irá ficar no meu radar.

A história centra-se numa escritora medíocre, June, que, após o curso, consegue publicar o seu livro, mas sem sucesso relevante, passando a vida a comparar-se com uma colega, Athena, que, pelo contrário, alcança as páginas do NY Times com a sua primeira obra. As duas não são propriamente amigas, mas convivem frequentemente.

É neste seguimento que June acaba na casa de Athena a comer panquecas. Mas este serão agradável acaba de forma abrupta quando Athena se engasga e morre. Entre chamar o 112 e socorrer Athena, June rouba um manuscrito que irá publicar em seu nome. A partir daí, conhece o estrelato, mas a sombra do roubo e as suas ideias menos elegantes sobre raça e preconceito irão contaminar todas as suas acções.

Este livro, apesar de apresentar uma premissa relativamente simples, consegue ser uma crítica social bastante interessante com a exploração de diferentes perspectivas. Na primeira, mais simples e directa, June é uma pessoa banal e medíocre que, no seguimento de uma acção negativa, é incapaz de viver com o peso moral do auto-conhecimento, percorrendo uma espiral de erros mirabolantes e catastróficos – ainda que, na perspectiva da própria June, todas as acções sejam justificadas, numa narrativa doentia que transparece um mecanismo psicológico de auto-proteccção. O roubo e consequente publicação do manuscrito em seu nome (apesar de lhe ter posto bastante trabalho na revisão e edição) vai contaminar o sucesso que tem e a forma como fala da obra.

June é uma personagem falível, carregada de defeitos humanos reconhecíveis, e que toma várias más decisões. Esta combinação, que, nalgumas personagens, poderia ser usada para criar empatia com o leitor, resultou, no caso de June, no oposto. Entre o preconceito e as decisões idiotas, cria-se uma espécie de asco fascinante que me levou a prosseguir o livro. June é, no entanto, uma personagem complexa e coerente apesar de tudo. Kuang cria aqui uma personalidade estranha, mas credível e, até, odiável.

Ainda assim, e no meio de tudo isto, Kuang consegue criar momentos de empatia para com June, quando a personagem é alvo de fortes críticas e perseguições online, caindo em depressão. As mesmas ondas que, nas redes sociais, antes teciam elogios à obra, tornam-se em comentários negativos e ameaças de morte que, lidos pela própria pessoa levam a um medo imobilizador.

Numa terceira perspectiva, existe uma forte crítica ao meio editorial. Temos os autores que se elogiam uns aos outros, tentando captar sucesso pela aproximação aos mais famosos, criando grupos viciados de comentário literário que pouco valem. Temos o aproveitamento das origens mais exóticas. Ou tentativa. No caso de June, que de exótica pouco tem, dado o tema do livro, acaba por utilizar um pseudómino por indicação da editora e por ter fotos que indicariam origens menos europeias.

O estereotipo no meio cultural encontra-se disperso e é difícil de dissociar da crítica editorial, ainda que vá para além disso. Fala das comunidades que organizam eventos culturais e dos clubes de leitura, fala de programas de ensino e de mentoria. Fala de perspectativas e expectativas, ao mesmo tempo que contrapõe com comentários de uma escritora branca que não percebe a importância da representação.

Impostora de R. F. Kuang consegue ser uma leitura mesmerizante, ao mesmo tempo que cria uma personagem credível, mas odiável (apesar dos momentos em que consegue criar empatia), e tece críticas às redes sociais e ao mundo editorial.