Se em O Feiticeiro de Oz, de Frank L. Baum, Dorothy é arrebatada do mundo real e na série de Gregory Maguire a história fantástica é transformada pela visão da vilã que não passa de uma jovem mal interpretada pela sociedade, em Was a fantasia é trazida à realidade, com uma Dorothy que me recordou a interpretação de Alan Moore em Lost Girls, ainda que numa perspectiva mais negra.
Semelhanças com a história fantástica? Muitas. Mas de uma forma que faz chocar a história fantástica com a realidade dura e cruel. Em Was Dorothy é uma menina que, tendo perdido a família numa doença, é enviada de comboio com o cão, para os cuidados da tia, pouco habituada a crianças ou animais domésticos. À chegada o choque cultural é forte – habituada aos pais actores é uma menina protegida e mimada que possui belas fatiotas – todas queimadas por receio da doença.
Agora de cabelo curto e roupas andrajosas, não encontra nos tios o carinho e o amor a que estava habituada, tomando o cão como refúgio emocional. Mas por pouco tempo. Numa quinta um cão citadino é pouco útil, ou até um empecilho e finalmente desaparece às mãos da tia. A única amizade que consegue criar é com um rapaz bastante mais velho que acaba por se suicidar, um rapaz que aspirava à liberdade e que assim terá arranjado forma de deixar o mundo que o prende.
Crescendo cada vez mais isolada, acaba por se revoltar, uma menina obediente em casa que, sofrendo abusos sexuais, se revolta e torna violenta para com os colegas mais novos, aproveitando-se do seu tamanho e força para aterrorizar. Escusado será dizer que numa sociedade tão tradicional quem é abusado é culpado e mal olhado, e pouco mais resta a Dorothy naquela terra que aprendeu a odiar.
Terá sido esta Dorothy que terá inspirado Baum a escrever o famoso livro sobre Oz, e que por sua vez terá influenciado a vida de várias pessoas, algumas das quais vamos conhecendo paralelamente: a da actriz que terá feito o papel de menina, a de um actor gay com traços autistas que terá ficado fascinado com o filme, ou a de um homem que, tendo conhecido uma velhota num lar acaba também por conhecer o livro.
Tendo escrito livros tanto de fantástico como de ficção científica (relembro o excepcional Jardim de Infância publicado na colecção da Clássica organizada pelo João Barreiros, ou o Ar publicado mais recentemente pela Gailivro), esta história é a antitese de tudo o que habitual nos livros do autor, um choque demasiado forte com a realidade, que acaba por transtornar profundamente as personagens.
Uma longa mas excelente história, bastante pesada, coerente com o lado mais negro do autor, revelado nos contos que li recentemente. Provavelmente irei ver o filme pela primeira vez, mais que não seja pela curiosidade de perceber a vertente que terá aterrorizado algumas crianças (sim, confesso, nunca vi o filme).


A Judy Garland, no filme, extá verdadeiramente assustadora….