Este ano o número de leituras foi bastante mais reduzido, cerca de 180, mas, à semelhança do ano passado, a maioria foi de banda desenhada. Podem consultar o que li no Goodreads. Entre estas leituras houve algumas que, claro, se destacaram. Eis!

Obras portuguesas

Dante é um dos melhores livros que tive oportunidade de ler de Luís Louro. Trata-se de uma história movimentada, com traços narrativos de história fantástica, acompanhada por um desenho fabuloso. Não se tratando de uma história para crianças, Luís Louro pega nos clichés do género, mas subverte-os para criar uma narrativa com várias camadas de entendimento. A acrescentar aos desenhos fabulosos do autor, encontramos uma edição cuidada que contribui para destacar este volume pela qualidade.

O Pescador de Memórias de Miguel Peres e Majory Yokomizo já não é tão recente, tendo sido publicado em 2021. No entanto, só tive oportunidade de o ler em 2022. É uma história mais introspectiva que nos leva a confrontar a dura realidade da velhice com a perda da memória. O volume destaca-se quer a nível visual quer a nível narrativo e tem, como principal defeito, ser curta.

O Infeliz Pacto de George Walden pega numa formulação clássica de histórias de negociação com o diabo para criar uma história original. A narrativa é cadenciada, colocando pequenas reviravoltas positivas e negativas que vão fazendo avançar o texto de forma constante, enquanto explora pequenos conflitos e desentendimentos. É uma história melancólica mais envolvente, com um desenho expressivo que complementa de forma perfeita a narrativa.

Bestiário da Isa é a história fantástica mais recente de Joana Afonso que coloca criaturas quiméricas num mundo semelhante ao nosso. A história é simples mas cativante, com personagens engraçadas e bem dispostas que agem de forma correcta, mas enfrentam as consequências. A premissa permite desenvolver imagens simultaneamente extraordinárias e estranhas, numa mistura agradável e original.

Colecções em curso

A Arte de Autor lançou o último volume de uma das mais fantásticas séries francobelgas que tive oportunidade de ler. Esqueçam o francobelga. Armazém Central é uma das melhores de séries de sempre, ponto final. Esta série leva-nos a uma remota vila do frio Canadá, demonstrando a vida dura, carregada de perdas e pequenas felicidades desta localidade. Mas quando duas pessoas se decidem afastar do caminho tradicional de amizades e estilos de vida, tudo muda e os habitantes aprendem, pouco a pouco, a celebrar a vida e o que os rodeia. A par com um excepcional enredo encontramos um desenho caricato, ligeiramente cómico, expressivo e envolvente, com uma brutal capacidade de transmitir pensamentos e sentimentos. O resultado é sublime.

Pela editora A Seita chegou o segundo volume de O Combate Quotidiano. Esta não é uma história fácil de se falar – não porque a narrativa seja difícil de perceber (pelo contrário) mas porque toca em realidades sensíveis, usando um ex-fotógrafo de guerra como personagem principal para falar de fobias, problemas psicológicos, memórias e relacionamentos familiares. Este fotógrafo (agora não de guerra) é um adulto complicado que sofre ataques de pânico e de ansiedade e tem dificuldades em assumir responsabilidades. O resultado é uma leitura brutal, que consegue criar uma perspectiva única, mostrando como esta personagem, com defeitos e virtudes, consegue lidar com a dificuldade em assumir as suas próprias particularidades.

Outra das grandes séries (ainda em continuação) é O Castelo dos Animais. Ainda não tive oportunidade de comentar o terceiro volume, mas tenho a dizer que é tão bom quanto os dois primeiros. O desenho é expressivo, conferindo personalidade e emoção aos animais – algo complicado quando não estamos a falar de personagens humanas; mas mantendo um traço suficientemente realista no que é um aspecto de um animal. A tensão continua a ser crescente, mantendo a tendência desde o primeiro volume, e o autor aproveita a empatia para com as personagens para puxar a história por caminhos cada vez mais pesados.

Fantasia

Duas nomeações para melhores histórias fantásticas e duas nomeações honrosas. Once & Future é o mais estrondoso, com uma premissa relativamente simples e explorada por várias outras narrativas – e se o Rei Artur voltasse? Neste caso, a história decorre numa realidade semelhante à nossa, onde monstros impensáveis andam à solta, entre necromantes, bruxas e caçadores de monstros. Cada personagem tem um papel simbólico, utilizando o paralelismo com a história original. A história constrói-se em ciclos de acção em que as personagens devem enfrentar um desafio sucessivamente mais complexo. O resultado é uma leitura movimentada e envolvente, carregada de detalhes surreais.

Taxus começa como uma fantasia aparentemente carregada de clichés, com uma personagem do nosso mundo a ir parar a uma realidade mágica, onde bons e maus se defrontam num eterno equilíbrio de forças. Mas esta personagem, acolhida entre os humanos bons, não é um herói tradicional, muito pelo contrário. A história usa criaturas tradicionais do bestiário da Cantábria para criar a sua realidade fantástica. Ainda que seja uma boa leitura, inicialmente não a considerava entre as melhores, mas a verdade é que as leituras de fantasia este ano foram agradáveis, mas colocam Taxus no topo.

Los que quedán é a primeira das menções honrosas. Como tantas outras histórias, esta começa com a criança a ser puxada para um mundo fantástico em que as suas capacidades são precisas para salvar o tal mundo de algum vilão. Mas neste caso a história centra-se nos pais da criança que, chegados ao seu quarto, dão pelo seu desaparecimento. Esta perspectiva da história é interessante e original, apesar de proporcionar uma narrativa triste e algo deprimente.

La ficción, a outra menção honrosa (e que ainda não comentei em entrada própria no blog) é o mais peculiar do conjunto. Tal como Los que quedán, apresenta-nos uma série de jovens que são puxados para um mundo mágico e que o exploram. Mas este mundo revela-se mais negro do que é habitual neste tipo de narrativas e acaba com um dos jovens desaparecidos. Vários anos depois, este mundo volta a assombra a vida destes jovens, agora adultos. A história tem influências de narrativas clássicas como Borges, e a progressão toma percursos e mais esotéricos.

Horror

Something is killing the children não é uma daquelas leituras introspectivas e emotivas. É, sobretudo, uma história de horror que fica na memória pela sua premissa. É um livro de acção que cumpre de forma bastante competente a produção de horror. O motivo pelo qual as crianças desaparecem é simples, mas eficaz, com uma pitada de sobrenatural e outra de teoria de conspiração que, sem grandes elaborações, são coerentes dentro de um universo semelhante ao nosso. Excepto por um detalhe que vai mudar tudo.

Que Jeff Lemire é um dos meus autores favoritos já não devia ser surpresa. Little Monsters usa alguns dos ingredientes de outras séries do autor para criar uma nova combinação. A história cruza elementos de ficção científica, fantasia e horror, levando-nos a um mundo apocalíptico em que a humanidade foi quase dizimada por uma doença, mas focando-se numa série de vampiros criança. Jeff Lemire usa alguns (poucos) clichés na definição dos vampiros, mas de forma a facilitar o entendimento das circunstâncias. O resultado é muito bom.

Ficção Científica

Bem, e lá volta Jeff Lemire ao topo. Neste caso com duas narrativas bastante diferentes, mas ambas de ficção científica. Ainda assim, destaco que este ano não fiz muitas leituras de banda desenhada de ficção científica. O primeiro, Senciente, foi publicado recentemente em Portugal e leva-nos a acompanhar uma nave de colonos que fogem do sistema solar para ocupar um novo planeta. Não serão a primeira nave do género. Entre os adultos e as crianças a bordo há um sabotador, alguém que se rebela contra o governo terrestre e que pretende a independência da colónia. Mas a sabotagem corre de forma errada, e acaba de forma pouco esperada – todos os adultos morrem, e a missão tem de ser continuada pelas crianças com a ajuda de uma IA.

O segundo, Cosmic Detective, cruza crime com ficção científica, levando-nos a um futuro pouco distante, onde os extraterrestres andam entre nós, sem que a maioria dos humanos o saiba. A personagem principal, um detective duro, investiga a morte de um destes seres, deparando-se com várias intrigas e conspirações. A história, criada em parceria com Matt Kindt, é estranha com vários elementos simultaneamente conhecidos e originais. A compor o conjunto encontramos o desenho mirabolante de David Rubin.

Manga

Nesta categoria, o melhor livro foi também uma das últimas leituras – Colecção de contos Best of Best Junji Ito. Esta excelente colecção de pequenas histórias de horror contém elementos estranhos e elementos mundanos. Nalguns contos a premissa é simples, mas irá fazer-nos olhar para objectos normais quotidianos de outra forma. Noutros contos, a história é ligeiramente absurda, mas coerente, e, dessa forma, constrói um novo receio.

Na Prisão é, também, um livro bastante peculiar. O autor, tendo sido preso por porte de arma, dedica-se, após a sua libertação, a descrever os detalhes da sua clausura. Existem várias páginas a falar das excelentes refeições servidas, bem como descrições detalhadas dos objectos dentro de uma sela, dos uniformes ou dos comportamentos apropriados a cada situação. A prisão aqui descrita afasta-se bastante da visão de prisão americana, muito apertada em regras, mas conferindo aos detidos conforto e dignidade, apesar do absurdo de algumas das regras.

O último volume é algo absurdo (num sentido completamente diferente) e divertido. Kyo Kara Zombie não é uma leitura para ser levada a sério, mas também não se leva a sério. A personagem principal, uma modelo quase desconhecida, torna-se famosa quando desaparece numa terriola do interior. O motivo? Bem, quando se desloca para o local em que seria fotografada é atacada por zombies. Felizmente é salva, também por um zombie, mas sapiente. Não escapa, no entanto, de uma ridícula dentada. Pouco acostumada aos novos apetites, a rapariga vai confrontar-se com uma nova forma de vida. É uma leitura leve, ridícula e divertida.

Outras ficções

Pele de Homem não se enquadra bem em nenhuma das categorias anteriores, ainda que tenha uma lógica ligeiramente fantástica. Trata-se de uma das melhores leituras do ano independentemente do género, e leva-nos para uma época onde as mulheres eram tratadas como mercadorias, seres de segunda categoria para serem usadas como alianças entre famílias (ainda que, em determinadas partes do globo, a realidade das mulheres continue a ser essa). É neste contexto que as mulheres de uma família usam uma pele que as irá permitir passar por homens e usufruir, temporariamente, da mesma liberdade. É uma narrativa que fala de género e sexualidade, com uma história que parece não se querer levar a sério, mas que assim consegue tornar-se mais impactante.

Outro dos grandes lançamentos do ano foi Little Tulip, uma leitura dura que nos leva à história anterior a New York Cannibals. Tal como neste, a história fala de vidas duras e superação, explicando-nos como um rapaz lingrinhas e esfomeado se vai tornar num durão coberto de tatuagens. É uma história carregada de reviravoltas violentas, que nos leva a percorrer um duro percurso de vida.

O último a integrar os melhores do ano é uma leitura pouco típica para mim – um livro onde se investiga um livro, enquanto se alternam três linhas narrativas diferentes. Nenúfares negros é uma leitura relativamente pausada, onde os detalhes interessam – e é no final, surpreendente, que somos obrigados a rever toda a história e a forma como as três linhas narrativas se encaixam. E é também no final que nos apercebemos tratar-se de uma grande leitura!

Outras Melhores Leituras

 

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