Começo por referir que ainda não tinha lido o romance original. Apesar de estar na minha biblioteca por ler há algum tempo. Já me tinha sido referido como sendo um bom retrato das cidades interiores americanas das décadas de 30/ 40. O que não esperava era o contraste. A história é contada pela perspectiva de crianças e da forma como se apercebem das diferenças sociais na sua pequena cidade. Existe, claramente, uma hierarquia que é determinada não só pela quantidade de gerações em que essa família vive na cidade, mas pela riqueza e pela cor da pele.

A história começa como a apresentação das férias juvenis. Com o Verão vem o tempo desocupado e a dupla de irmãos, Jem e Scout, inclui, nas suas brincadeiras, o vizinho que parece ter uma imaginação sem fim  – tanto para criar ficções nas quais se divertem, como para criar episódios ficcionais na sua própria vida. Não é de estranhar que o trio se volte para a casa mais singular da cidade – uma casa que dizem estar assombrada, mas que afinal é habitada por alguém que nunca de lá sai. Como desconhecido, a figura que vive nesta casa passa a ser temida. Ultrapassar o portão é mostrar coragem e é claro que, nestas idades, os jovens se desafiam para ultrapassar os limites da propriedade.

As aulas recomeçam. Com elas ausenta-se o rapaz vizinho, mas apresenta-se uma nova professora. Quando, à hora de almoço, um dos rapazes aparece desprovido de almoço, Scout, a irmã mais nova, apressa-se a explicar que tal não é estranho, dada a proveniência familiar do jovem. Razão para Scout levar umas quantas reguadas. Assim começa, na escola, a caracterização das familias que habitam naquela localidade, em que cada uma tem um papel definido: as boas famílias, os agricultores pobres, aqueles que vivem à margem da lei (através de subsídios e em condições miseráveis), e os pretos (que não têm direito a ir à escola).

Esta caracterização vai sendo aprofundada de forma indirecta ao longo da história, mas atinge o auge quando o pai de Scout e Jem, advogado, defende um jovem de uma acusação de violação. Scout e Jem começam a ser gozados pelos colegas – o jovem que o pai está a defender é preto. Respondem, claro, agressivamente, sem perceberem, na prática, o que estão a defender, ou do que está a ser acusado o pai. Os ânimos exaltam-se e até homens bons se unem para tentar fazer ver ao advogado o erro de prosseguir com a defesa – irritados pela confrontação da palavra de um preto contra a palavra de um branco. As designações de raça existem e têm como objectivo impôr, ao leitor, a visão da época.

Utilizando o ponto de vista das crianças, a história consegue ser percepcionada sem a força de todas as barreiras sociais que realmente aqui estão em jogo. As crianças já entendem estas barreiras mas não lhes dão maior importância do que à justiça. O pai, advogado, é uma personagem correcta que não deixa de defender o que é correcto – nem quando a irmã faz questão de aparecer para tentar impor normas mais femininas à menina.

Vencedor de um Pulitzer, trata-se de um romance mais complexo do que parece. Complexo por toda a dimensão social que transporta. O caso de tribunal acaba por quebrar a inocência destas crianças que se deparam com a injustiça baseada na cor da pele, as inevitáveis diferenças económicas e com as diferentes expectativas para o crescimento de um rapaz e de uma rapariga. Tratam-se de elementos que quebram a visão da sociedade e do crescimento – a das personagens e a do leitor.

Mataram a Cotovia foi publicado em Portugal pela Relógio D’Água, tratando-se de uma edição pouco habitual para esta editora. Em termos de edição nota-se que a lombada não tem o tamanho apropriado para o número de folhas (um dos cadernos está colado fora desta).