Eis mais um livro sobre livros, ou em torno de alguma associada a livros. Neste caso trata-se de um livreiro que escreve… mas o que escreve não está bem associado à sua profissão como livreiro, ainda que existam referências a tal, mas antes a livros e à história da leitura.
O volume começa com uma secção de livros de conforto, falando dos livros aos quais voltamos como se fossem um espaço conhecido e familiar. Esta secção abriu bem o tom do volume – muitos dos volumes referidos não são os habituais clássicos. Pelo contrário, o autor afasta-se das referências clássicas e fala antes dos guilty pleasures, dos livros que são comprados e lidos, mas que poucos têm a coragem de dizer que lêem face a uma audiência séria. Aparecem aqui referências a fantasia e ficção científica, com destaque para Terry Pratchett (nome que é referido em vários momentos).
Quando grandes escritores como Kazuo Ishiguro e David Mitchell começam, de repente, a escrever contos sobrenaturais, confundem os editores, que temem as palavras «ficção científica» como temeriam um Chardonnay barato.



O autor fala de livros que lhe pedem na livraria, mas o grande destaque são os livros de conforto de personalidades conhecidas, com subdivisões como “A arte subtil da recomendação” onde se fala de como algumas pessoas arranjam formas originais para recomendar determinada leitura, ou “Tocando a matéria” em que refere o livro como objecto de conforto e alvo de afeição, seja pelo cheiro das páginas, seja pela encadernação.
O segundo capítulo, denominado, Ler na adversidade, centra-se em momentos históricos em que pessoas, vivendo nas condições mais difíceis e degradadas, se dedicam à leitura: sapateiros que alternam turnos para ler em voz alta para os restantes ou mineiros que criam bibliotecas lendárias. Fala-se, também, das mulheres em secções como “Ovídio escondido debaixo da almofada: a leitura feminina” tanto na vertente da escrita, como na vertente da leitura.
A crueza da reacção dos leitores no passado é cativante. Ao contrário do que se passa hoje, os homens eram quase tão susceptíveis de chorar em público por causa dos livros como as mulheres. (…) Em 1749, duas irmãs em Cholchester, «mulheres sensatas e realizadas» foram encontradas «certa manhã a chorar compulsivamente» por causa de Cecília, de tal forma que tiveram de adiar o almoço para poderem recuperar dos seus «olhos vermelhos e narizes inchados».



Como disse anteriormente, o autor não se reduz a falar apenas do que é academicamente bem aceite. No terceiro capítulo “O estranho poder emocional da leitura popular”, refere a literatura de cordel, os livros que eram vendidos por poucos tostões em grande quantidade, apesar de, por vezes, clandestinamente. Umberto Eco gostava de filmes de Homem-aranha ou Dylan Thomas adorava livros de cowboys. Este tema é continuado em “Hei-ho, o vento e a chuva: os livros dos vendedores ambulantes”.
Durante mais de 300 anos, desde cerca de 1550 até finais do século XIX, milhões de europeus, ricos e pobres, amaram uma forma sensacionalista de livros, hoje em dia maioritariamente destruída: os folhetins. Esses eram livros pequenos e baratos, muitas vezes alegremente ilustrados.
O autor prossegue tangencialmente ao que esperaríamos do título e fala de “Sonhos na biblioteca e bibliotecas de sonho”. Não faltam as usuais referências à Biblioteca de Alexandria (será que existiu? mas afinal será que isso importa? Alexandria será mais importante como símbolo do que como facto) ou à Biblioteca do Congresso com os longos anos de tentativa de ostracizar e descriminar. Referem-se bibliotecas que são fictícias e outras que o não são, bem como o costume histórico de atribuir bibliotecas às deusas (ou deusas às bibliotecas) ou a classificação, não só de livros, como de empregados.



Depois da referência a bibliotecas públicas, é a vez de referir as privadas, em “Paixões privadas: coleccionadores”. A abordagem é peculiar, falando de livros como Fahrenheit para referir uma forma diferente de coleccionismo de livros, ou da forma como o livro Vénus e Adónis de Shakespeare foi mantido intacto, no seguimento de uma espécie de censura. O autor fala, também, de bibliotecas enormes ou importantes, bem como o seu destino final após a morte dos seus proprietários – a maioria dos descentes não vê na biblioteca herdada algo para manter.
Muito se fala sobre livros, bibliotecas, livrarias ou edições. Mas o autor decide dedicar um capítulo inteiro a algo pouco referido – as margens dos livros ou a marginália. Começa com as imagens que adornavam os livros reproduzidos no mosteiro, com as suas figuras caricatas e muito pouco religiosas, e passa a explicar como as inscrições na margem passaram de habituais e até bem vindas, a algo para limpar ou apagar.
Da mesma forma, a perspectiva sobre a aquisição do livro usado muda com a Revolução Industrial, sendo que o foco deixou de estar na reutilização do que nos rodeia, e passou a estar na aquisição de produtos novos como forma de estatuto. A perspectiva sobre o livro usado atingiu ainda outro nível quando é referido como fonte de doença, no capítulo “Sinais de uso”.



Depois destes capítulos peculiares e interessantes, Martin Latham passa a “Sobreviver à Sorbonne: o livro no Ancien Régime”, falando de livros proibidos e contrabandeados, passando fronteiras como carga proibida e, até, perigosa – nada se compara a inflamar os espíritos. Ainda na vertente francesa, o autor dedica um capítulo aos “Livreiros nas margens do Sena” – um grupo de livreiros de aspecto peculiar que habita o local ao longo de séculos e que protagonizam uma série de episódios caricatos em torno dos livros.
Em “Porquê Veneza?” o autor passa a falar da relação desta cidade com os livros. Segue-se um capítulo semelhante, mas em torno de Nova Iorque com “Confusão generalizada: Livrarias de Nova Iorque”. Nesta componente o autor aproveita para falar um pouco mais da sua experiência como livreiro e dos que trabalharam com ele (curiosamente, o famoso David Mitchell).
Crónicas de um livreiro é algo bastante diferente do que esperava – 90% do que apresenta está pouco relacionado com a actividade de livreiro, mas mais com o conhecimento que o autor tem do negócio dos livros ou das particularidades e histórias em torno dos livros. Ultrapassando a concretização ser diferente do esperado, é uma excelente leitura.
