Admirável Mundo Novo não é o primeiro livro de Filipa Fonseca Silva, mas o primeiro que parece enquadrar-se na ficção especulativa. O título é uma óbvia alusão ao clássico Admirável Mundo Novo, ainda que em execução e conteúdo recorde mais um We ou 1984. A premissa promete um romance distópico com considerações ambientais e é isso que cumpre, resultando numa história muito terra a terra e envolvente.
A história centra-se sobretudo em Billie, uma jovem estudante que partilha casa com mais dois jovens: Laura e Max. Percebe-se desde cedo que Laura é uma menina de boas famílias que não precisa de alugar quartos para ajudar nas despesas, mas talvez o faça pela companhia. Entre os três desenvolve-se amizade e cumplicidade – até ao momento em que Laura desaparece sem deixar rasto.
Os episódios saltitam temporalmente, dando-nos a conhecer a Billie enquanto jovem estudante e a Billie transformada em Joana, uma jovem que cuida de uma loja de livros em segunda mão, num regime totalitário, onde surgem regras de utilização de recursos e de reciclagem que devem ser obedecidas à letra. A vigilância instala-se, mas para além dos meios electrónicos existem os vizinhos, sempre prontos a denunciar, ou até a instigar linchamentos públicos.
Mas como se passou de uma sociedade dita normal e actual para tal regime? É isso que a história nos vai contar, apresentando-nos os actos terroristas que culminam como a posse do governo e a instalação de um regime déspota, encabeçado por algumas figuras míticas que se tornam símbolos de um novo mundo. Infelizmente, o que poderia ser a criação de uma sociedade sustentável e equilibrada com a natureza, torna-se numa sucessão de abusos, onde se vive num clima de terror – mesmo que alguns não admitam para si mesmos esta realidade.
Como Joana, Billie vive sem amizades, interagindo o mínimo possível, mas tentando levar uma rotina que a torne invisível ou, pelo menos pouco interessante. Pelo meio, recorda os momentos de prisão e submissão, as torturas pelas quais passou pela amizade mantida com Laura. E claro que existirá uma altura a partir da qual tudo mudo, onde reencontra Max e irá sair do ciclo de vivência cinzenta.
Tal como noutras distopias, em Admirável Mundo Verde o importante é não se destacar, seguindo-se as regras, baixando-se a cabeça e tornando-se invisível. Controlam-se as emoções e as feições, adopta-se uma rotina aceitável, evitam-se amizades e sensibilidades. A realidade parece diminuir-se, sendo uma forma de sobrevivência para escapar às consequências.
O que destaca Admirável Mundo Novo são, sobretudo, dois elementos: a justificação ecológica, e o relacionamento dos três jovens no centro do romance. Sobre a justificação ecológica, podemos dizer que a vemos no nosso quotidiano. As alterações climáticas são visíveis, e o poderio que governos e grandes empresas têm para reverter a situação não é comparável ao resultado positivo da reciclagem por um cidadão. Sucessivamente, vemos como os governos evitam a questão, aprovando leis que, parecendo ser positivas para a situação, nada mudam na prática.
O outro elemento de destaque é o relacionamento dos três jovens. Billie e Max são um casal, mas ambos acabam por ter um instinto protector em relação a Laura, que é uma jovem idealista, muito focada em transmitir mensagens ecológicas, organizando movimentos estudantis e mobilizando vários jovens. Tudo numa vertente bastante pacífica, até conhecer um homem, mais velho, e mais dado a uma abordagem militar.
A instalação de uma sociedade mais verde, com reciclagem e contenção no uso de recursos, até poderia ser considerado uma utopia – não fosse a forma como o poder é exercido, prendendo e matando quem se engana em pequenos detalhes (como o caixote onde colocar pratos partidos). O ambiente é opressivo, e as novas leis são aplicadas sem tribunal, bastando o apontar de um dedo para um julgamento popular.
A preocupação torna-se em fanatismo e ao invés de uma sociedade organizada e sustentável encontramos uma ditadura, onde não falta a vigilância, o despotismo e a falta de empatia. Encontramos também a rigidez militar, o isolamento do país (com o bloqueio de fronteiras) e uma espécie de populismo nacionalista que se torna cego e doentio.
Admirável Mundo Verde consegue a proeza de desenvolver uma nova abordagem distópica, desta vez com raízes ecológicas. Ao contrário de outras distopias, explora também a conversão no novo regime, bem como os traumas para tal mudança, ao mesmo tempo que se foca no relacionamento dos estudantes que se transformam em jovens adultos.
