Depois de Uprooted (publicado em português como Coração Negro), a autora volta a ser influenciada por um conto tradicional para escrever Spinning Silver. Neste caso, a inspiração virá de Rumpelstiltskin, pegando na transformação de prata em ouro, ainda que não existam referências a criaturas que queiram crianças em troca de milagres. A narrativa tem elementos bastante positivos, mas… há um aspecto específico que me incomodou.



A história
O mundo de Spinning Silver apresenta-se com detalhes medievais – uma sociedade sem tecnologia, onde a maioria da população subsiste trabalhando os campos e cuidando dos animais. Este mundo distingue-se do nosso pela existência dos Staryks, poderosos e impetuosos guerreiros brancos que não só trazem e comandam o Inverno, como têm direito sobre animais e plantas que sejam brancos.
A narrativa alterna entre três personagens principais e várias outras secundárias. A primeira, e diria, a mais importante, é Miryem, uma jovem judia que está farta de viver numa casa pobre. O pai, um agiota, tem muito jeito para emprestar dinheiro, mas pouco para o cobrar. Quando a mãe de Miryem fica doente, a jovem decide-se a fazer a cobrança, conseguindo implementar um sistema que lhes garante o retorno do dinheiro emprestado.
A segunda personagem principal é Irina, uma nobre solteira que o pai pretende fazer casar com o Csar. Mas as recordações que Irina tem do csar não são muito positivas. Torturador de esquilos e outros animais, era uma criança sádica e egocêntrica. Em adulto estará possuído por um demónio de fogo. Descendente de um cruzamento de humanos com Staryks, tem uma aparência bastante vulgar, mas terá herdado poderes que nunca explorou.
Wanda é a terceira personagem principal – uma jovem camponesa que vê a mãe esgotar-se em sucessivos partos (e nados-mortos). O pai, por sua vez, é um bêbado que todos os dias bate nos restantes elementos da família. Quando Miryem resolve cobrar a dívida ao pai e pede os serviços de Wanda em troca, esta vê, finalmente, uma forma de se afastar e se tornar independente.



Crítica
Um dos aspectos mais interessantes de Spinning Silver é a alternância de personagens. Tal permite não só conhecer várias perspectivas sobre os acontecimentos, como adicionar dinamismo à narrativa e suavizar os saltos narrativos, focando-se mais nos episódios que acrescentam algo à progressão da história. Cada personagem tem os seus problemas e conflitos, fazendo com que haja vários elementos para resolver na narrativa.
As personagens principais são mulheres que possuem algo em comum – todas se vêm limitadas nas suas acções e na determinação do seu destino por serem mulheres. Sobretudo Irina e Wanda. Irina até tem capacidade para entendimento político, mas é vista pelo pai apenas como uma forma de fazer uma aliança ou ganhar uma nova posição. Tendo a sua mãe falecido em criança e vivendo com uma madrasta (que, essencialmente, a ignora), o estatuto na própria casa é mínimo.
Já Wanda sabe que pode ser facilmente trocada por uns quantos animais ou barris de vinho, sendo a necessidade de pagar a dívida o elemento fundamental que a tem salvo de tal destino. Ainda assim, a figura paterna é considerada como suprema e todos os dias há motivos para lhe baterem. A ela e aos irmãos.
Neste seguimento, claro que a narrativa se centra um pouco na situação feminina, ainda que cada uma das personagens arranje forma de lidar com ela sem escapar à inevitabilidade de um casamento. Mas tal como Uprooted, algumas das personagens parecem sofrer de Estocolmo – depois de muito intimidadas pela violência dos seus parceiros, o medo passa a fascínio e amor. Ainda que, felizmente, no caso de Spinning Silver, este elemento seja mais fraco que em Uprooted e tenha sido aplicado mais no final da narrativa, não deixa de me irritar este padrão de abuso, enaltecido como amor e base para um relacionamento.
Não fosse esta forma de resolver as questões amorosas, e diria que Spinning Silver está muito bom como história fantástica. Ainda que tenha alguma influência da lenda de Rumpelstiltskin, a transformação de prata em ouro é, na prática, reflexo das capacidades de Miryem para o negócio, que consegue fazer bons investimentos e garantir o seu retorno. As várias personagens conseguem cativar-nos e criar empatia, sobretudo por serem personagens que resolvem fazer algo em relação à sua situação.
Conclusão
Spinning Silver até poderia encontrar-se entre as melhores leituras fantásticas do ano (e talvez até lá chegue, mas não numa posição tão alta) não fosse a forma de resolver as questões amorosas. O mundo é interessante, suficientemente próximo do nosso para ser reconhecível, mas apresentando elementos fantásticos coerentes que proporcionam um ambiente interessante para uma história fantástica. A escrita é fluída e ritmada, levando a uma leitura rápida.