Lançado pela Norma em duas edições distintas – uma a cores em formato capa dura normal e outra a preto e branco em edição de luxo (com outra encadernação e extras), El Dios Salvaje promete a história de um macaco que há-de vingar-se dos seus captores. Entre os extras e a encadernação, mas sobretudo o aspecto das duas edições, optei pela edição a preto e branco.

Entre o fantástico e a ficção científica, a história centra-se num macaco denominado Sem Voz que, apesar das poucas esperanças depositadas nele, consegue surpreender os seus semelhantes e garantir um futuro auspicioso. Mas é no auge das suas acções relevantes que é capturado por seres humanos que irão maltratá-lo.

Anos depois, a civilização que o mantém cativo colapsa, no seguimento de uma catástrofe natural. Entre as facções que tentam aproveitar o caos para conquistar o poder, alguns devem preocupar-se com a vingança de Sem Voz, que não só os vigia, mas espera pelos melhores momentos.

O tempo e o espaço são incertos, a voz narrativa é distante e a perspectiva é saltitante. El Dios Salvaje começa como uma narração centrada nos animais que, sem saberem porquê evitam determinadas localizações e mantém uma mitologia simplista, baseada no medo e na superstição, pouco consciente, mas que, de alguma forma limita as suas acções. E, pelos vistos, com boas razões.

A partir daí, salta para os momentos da catástrofe, apresentando a perspectiva de diferentes personagens, mas saltitando para as suas memórias, principalmente as relacionadas com Sem Voz. É através da sua perspectiva que vamos percebendo a besta, e, até, compreendo as razões da sua raiva e da sua necessidade de vingança.

Sem voz não é simplesmente um macaco, mas um animal que conhece uma realidade pautada pela violência perpetuada pelo homem – desde os primeiros momentos. O momento da sua captura é traumático, mas para além disso, a sua raiva é alimentada, de forma a tornar-se cada vez mais violento, de forma a participar em cruéis batalhas para entretenimento. Tal como os escravos humanos, é forçado a desempenhar um papel, mas de tal forma envolto em violência e crueldade que se torna uma besta.

A negritude da narrativa não se origina apenas pela violência, mas também pela escravidão e tortura perpetuadas em Sem Voz, existindo ainda as batalhas e consequentes mortes, a humilhação, o silêncio contido e a raiva crescente. Particularidades que não são únicas de Sem Voz, estabelecendo-se algum paralelismo com algumas personagens.

Completando a narrativa, os desenhos são sombrios, complexos e expressivos. A proximidade vai oscilando, mas de alguma forma senti que era uma visão algo distante, principalmente das personagens humanas, mesmo quando era mostrada a sua perspectiva. É uma escolha narrativa e visual peculiar, sabendo que muitos autores optariam por explorar mais a ligação com as personagens humanas.

Mas a narrativa tem como personagem principal Sem voz, sempre presente, apesar de muitas vezes visualmente ausente, uma sombra às restantes personagens. Sem voz não tem propriamente uma perspectiva própria, mas a sua história é construída através das várias perspectivas – para além de não ter voz própria, não lhe é dada uma. Pelo menos não directamente.

El Dios Salvaje é um livro brutal. Nos vários sentidos da palavra. Possui desenhos soberbos que acompanham uma narrativa carregada de brutalidade e crueldade, ao mesmo tempo que apresenta um Império complexo que serve de cenário e que é, no entanto, apenas um detalhe narrativo. Uma leitura recomendável, ainda que vá chocar alguns leitores.