De alguma forma, Spirou nunca foi uma leitura de infância ou adolescência. Não me recordo de ver álbuns destas personagens no meu quotidiano, nem qualquer referência enquanto cresci. Mais recentemente, quando juntei casas e bibliotecas, passei a ter alguns livros de Spirou disponíveis e foi assim que descobri a personagem.
Esta série não é mais uma aventura clássica de Spirou e Fantástio, ainda que use as características principais de ambos para criar duas personagens num contexto mais realista. Neste caso, coloca as personagens na Bélgica, no início da Segunda Guerra Mundial, iniciando-se a história antes de invasão do país.



A história começa por mostrar as notícias inquietantes que chegam à cidade, e prossegue mostrando a invasão e as consequências nos locais, com o ambiente opressivo, a nova ordem instaurada pelas forças policias alemãs e a perseguição aos judeus em solo belga. A história consegue apresentar o quotidiano dos belgas da cidade e do campo, mostrando como sobrevivem e como resistem.
Spirou, mais jovem e puro de coração, pensa na jovem namorada que estará retida pelos alemães. Já Fantásio é mais flexível no que tem de fazer para sobreviver, falando muito mas fazendo pouco do que diz, e adaptando-se sempre que necessário. Felizmente, a personagem vai redimir-se destes momentos iniciais, com a progressão da história – mas quem gosta de Fantásio vai ter de chegar até ao terceiro volume para tal.



Através das duas personagens, a história explora a postura típica dos conquistados. Alguns resistem. Outros adaptam-se. Temos de perceber também que as notícias das atrocidades nazis são entendidas como exagero e propaganda, havendo muitos poucos que acreditam que tais coisas possam mesmo acontecer. Assumindo que se trata de uma “usual” conquista, alguns belgas até antecipam a famosa ordem dos alemães. Há, claro, no entanto, os que percebem que há outros movimentos políticos e exterminadores.
Sob o jugo alemão, a população sobrevive – de formas diferentes na cidade e no campo. A cidade tem racionamento e senhas para alimentos, havendo quem tenha de recorrer ao mercado negro para sobreviver. Já no campo, com astúcia, é possível manter alguns animais e alguns alimentos, evitando-se, com astúcia, a fome.
Em ambos os lados, cidade e campo, estabelece-se uma rede de inteligência que permite passar informação, evitando-se os nazis quando se recorre a esquemas paralelos – como o patrocínio de um teatro infantil escrito por Spirou e Fantásio que os faz percorrer várias localidades enquanto passam objectos e informação sem o saberem.



A perspectiva é, muitas vezes, infantil. Spirou apesar de mais velho, é suficientemente jovem para se interessar pela dinâmica de brincadeira das crianças que se inicia com igualdade entre eles, que brincam às guerras no primeiro volume. Com a progressão da história, as crianças vão revelando o que ouvem em casa, havendo pais fascistas, ou crianças que se vêem, de um dia para o outro marcadas como judeus, apesar de nunca se terem apercebido de tal diferença. As brincadeiras vão mudando, tal como as dinâmicas, principalmente quando há famílias que desaparecem e pais que são eliminados pelos nazis.
A dinâmica das crianças vai reflectindo a dos respectivos pais. Não é, assim, de estranhar, ouvir de uma criança alguns argumentos a favor dos nazis e da perseguição política e religiosa. Lentamente, pela perspectiva das personagens vamos assistindo à alienação do outro, seja por crença religiosa ou afiliação política, e consequentemente, à justificação de actos perseguitórios.



Em paralelo, há uma crítica recorrente ao modo de alguns religiosos, padres que não só justificam e apoiam a perseguição aos judeus e comunistas, como a instigam e agem de modo bastante diferente daquilo que pregam como sendo as práticas cristãs – uma contradição de que não são consciente. Mas há, também, religiosos com outras ideias que agem nas teias de comunicação e informação da resistência, facilitando documentos para quem deles precisa.
Apesar de todo o contexto, a narrativa tem momentos humorísticos interessantes, que aligeiram a leitura da história e permitem criar uma narrativa fenomenal. A Esperança nunca morre… cativou-me facilmente e foi de uma rajada que li os três primeiros volumes. Ainda bem que o quarto volume já está plenado!