Vencedora do prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal em 2022, Catarina Costa é a autora de Periferia, uma distopia peculiar, contada na primeira pessoa, onde uma jovem deambula sem parar, com medo de ser parada, reconhecida e enviada para outro local. É uma história com a mínima interacção entre personagens.
E Então, lembro-me é uma história diferente, também uma distopia, mas com elementos comuns a Periferia. A narrativa centra-se em Laila, uma mulher que acorda de uma operação, sem memórias, esterilizada e de feições alteradas. Após uma breve estadia no hospital, é levada para uma vivenda num bairro colorido, onde a esperam outros companheiros de casa, também eles resultado de uma operação semelhante.
É nesta casa que vai perceber que se encontra numa espécie de sociedade à parte, onde todas as pessoas passaram por procedimento semelhante, existindo algumas que nunca mais se recordaram de coisa alguma da sua vida anterior, e outras que vão, pouco a pouco, recuperando ou reconstruindo memórias soltas. Sem acesso a cuidados médicos, as pessoas desta cidade estão reclusas, existindo apenas para trabalhar nas fábricas.
E então, lembro-me começa com um vazio. Laila não tem recordação de si própria, e mesmo o seu nome não ressoa como esperado. A mesma sensação ocorre quando se vê ao espelho, ou percepciona o seu corpo. Todas as restantes personagens se encontram na mesma situação e, após algumas conversas, o entendimento geral, é que tal facilitará a vivência enclausurada naquela cidade, sendo que ninguém se recorda de ninguém. Será, assim, mais fácil cooperar, e desenvolver o trabalho necessário nas fábricas, sem resistir e sem saber como escapar. Ou para onde.
Pouco a pouco, Laila começa a assistir às reuniões onde as pessoas expõem as poucas memórias que vão recuperando. Existem locais específicos para esta partilha com o objectivo de encontrar pontos de coerência, cruzando memórias de pessoas diferentes e tentando, desta forma, reconstruir uma percepção do mundo lá fora.
Entre as primeiras memórias e a construção que vai sendo feita com o surgir de outras peças do puzzle, vamos percebendo que o cérebro não só tem o poder de inventar memórias, como por vezes tenta proteger o indivíduo de se confrontar consigo próprio, e, nesse caso, vai proteger recordações que indicam percursos menos éticos ou mais controversos.
Se esta existência parece infernal, a verdade é que, com a reconstrução da sociedade de onde veem, questionamo-nos (bem como as personagens) se este mundo não será abençoado. As recordações são mais ou menos unânimes em descrever o mundo exterior também como uma distopia – mas bastante diferente! Uma distopia de controlo de palavras e de vigilância, onde as pessoas podem desaparecer subitamente, e os altos prédios são uma forma de manter os cidadãos debaixo de olho.
Já a existência nesta cidade colorida, mas sem memórias, provoca uma espécie de isolamento agudo, não só em relação ao que os rodeia mas também pela incapacidade de a pessoa se reconhecer. Do que falar, como interagir e criar empatia, se ninguém sabe nada sobre si próprio? Como desenvolver ideias, sonhos, pensamentos, se não sei as minhas capacidades nem me recordo o que fiz no passado?
Se, na sociedade distópica original, a vivência era de constante medo, já que se sabia que qualquer pessoa podia ser um espião ou um agente, sendo que os relacionamentos eram escassos e fonte de ansiedade e receio; nesta cidade colorida, tudo isso parece posto de lado e as pessoas libertaram-se dessa componente. Não que sejam livres. Nem que consigam estabelecer laços de amizade com facilidade e naturalidade.
Nesse sentido, E então, lembro-me, desenvolve uma distopia onde o isolamento é ainda mais agudo que Periferia. Se, neste último, a personagem sabia que não podia criar laços nem falar sobre si própria, nem para aqueles que a ajudavam, neste caso, mesmo que Laila quisesse falar sobre si própria, não teria como. As conversas são, portanto, limitadas e obsessivas, centrando-se muito na procura de formas para facilitar a recuperação de memórias ou no cruzamento de memórias para perceber cada origem. Existem, no entanto, algumas parcerias, limitadas aos temas fulcrais desta cidade.
E então, lembro-me é uma leitura mais dinâmica e fluída que Periferia, que consegue desenvolver um conceito distópico diferente. O ambiente não é tão opressivo, ainda que as circunstâncias em que as pessoas se encontram naquela cidade sejam desafiadoras e, até, assustadoras. A execução da premissa, com a recordação progressiva, faz com que a história se desenvolva sobretudo numa forma mais introspectiva, apesar de ter momentos de alguma, pouca, acção, ou de interacção com outras pessoas.
É, em suma, uma boa leitura, que me cativou mais do que Periferia. É, sem dúvida, um livro aconselhável a quem gosta de distopias, mas que deve estar preparado para um ritmo mais lento, com uma perspectiva mais introspectiva.