
Eis uma das leituras simultaneamente mais estranhas e gratificantes dos últimos tempos. Aconselhado por Dário Duarte (Derradebd) no seu instagram, captou-me a atenção pelo tom e claro, género – ficção científica distópica sobre discriminação, colectivismo, troca de liberdade por proteccção e desumanização.
Este volume compila várias histórias, destacando-se três mais longas ao longo do livro: Wonder City, Shelter, 1996. A primeira leva-nos a uma sociedade futurista onde uma figura fictícia parece controlar tudo, dizendo conhecer melhor cada indivíduo do que ele a si próprio. Nesta sociedade, pouco é deixado ao acaso e vários seres humanos já se habituaram a acreditar no “bom doutor” como resposta para todos os seus temas. Esta perspectiva passiva deixa-os manipuláveis e cegos à realidade.



A história recorda o clássico Admirável Mundo Novo, ainda que pareça estar num nível inferior de total controlo genético. O doutor sabe que genes devem ser propagados, a gravidez natural está a ser abolida e os humanos deixam o livre arbítrio pelo conforto de ter quem pense por eles. Para além destes elementos, o texto caracteriza o futuro como sendo de decisões rápidas, dando um seguimento absurdo ao imediatismo que vemos nos nossos dias. É um texto irónico, com alguns detalhes futuristas e absurdos que se tornam interessantes. É uma boa leitura, apesar de não trazer nada de muito novo ao cenário das distopias.
A segunda história decorre num centro comercial subterrâneo que funciona graças a uma bateria atómica. Quando a cidade sofre um ataque nuclear, o centro comercial fecha-se, fechando vários indivíduos no seu interior. Como qualquer centro comercial de grandes dimensões, possui tudo o que é necessário para que estes indivíduos permaneçam vivos. Mas será que houve mesmo uma ataque nuclear? Esta é a grande questão que assombra toda a narrativa.



Enquanto que, na maioria das histórias apocalípticas, a organização demora a estabelecer-se após um desastre, aqui, a organização parece já estar implementada, aguardando apenas o desastre. Assim que o centro de fecha, e passando alguns momentos para restabelecimento psicológico, a organização do centro comercial toma conta, distribuindo tarefas e controlando a informação a que todos têm acesso. Uma mulher, em específico, que toma agora conta da biblioteca (antiga livraria) parece suspeitar de algo.
Esta história ganha especial interesse pela diferença de resposta face ao desastre, mostrando os humanos direccionados por uma autoridade superior e pouco definida. Mas claro que neste contexto parecem existir abusos de poder, não só pelos seguranças que devem manter a ordem, mas por quem rege. Existem, claro, aqueles que acham que o desastre nunca existiu.



A terceira grande história leva-nos a uma distopia de discriminação racial, através de uma perspectiva de humor negro, bastante incomum. A narrativa centra-se num homem que pretende adquirir uma peça para o carro, descobrindo que, no local onde se vendem peças usadas, se encontram os carros bem como os falecidos donos, embalsamados. Se tal abordagem é bastante negra, imaginem quando a personagem descobre que não pode comprar peças daquela secção, porque se destina apenas a clientes brancos. Tendo ele origens sul americanos (mesmo sem parecer) deverá adquirir numa secção menos charmosa.
Esta história começa por apresentar um enquadramento macabro para algo tão banal como a aquisição de peças de carro em segunda mão, com descrições de mau gosto, na forma como as famílias resolvem deixar os falecidos em exposição, visitando-os frequentemente. Ainda assim, a narrativa consegue atingir um segundo nível de choque quando apresenta que, até naquelas circunstâncias, existe racismo e descriminação.



Social Fiction apresenta histórias em que os humanos são colocados em situações pouco usuais, algumas extremas, desenvolvendo-as com um humor macabro ou retorcido. Algumas situações são irónicas, outras inusitadas, resultando numa leitura que se consegue distanciar, em tom, da usual ficção distópica / apocalíptica, com um cunho muito próprio e aconselhável.
Fico feliz que tenhas gostado.
Derradé