
Tenho este livro há uns anitos, à espera de ser lido. Comprei-o pouco tempo depois de ter lido a trilogia do mesmo autor, The Last Policeman, que decorre durante a quebra da sociedade humana, após a certeza de que a vida na Terra terminará em poucos meses. Pouco a pouco, vemos o colapsar da civilização, sendo que a personagem principal tenta manter-se em funções, investigando um crime em paralelo. É, no seguimento da premissa, um livro movimentado, apesar de muito centrado na personagem principal, que apresenta elementos caricatos e, até cómicos, apesar do contexto negro.
Já Underground Airlines apresenta uma história num único volume, decorrendo numa realidade alternativa e levando-nos a um século XXI onde a escravatura se mantém nos Estados Unidos da América. O título é uma referência moderna à Underground railroad, um termo que se referia à rede composta por casas e contactos nos Estados Unidos da América que facilitavam a fuga de escravos. A história é contada na perspectiva de Victor, um ex-escravo que foi treinado para perseguir escravos fugidos, deambulando, sob várias identidades, nos Estados mais a Norte.
O caso que o Victor tem agora em mãos tem algo de estranho. Detalhes que não correspondem e indicações suspeitas. Mas ainda assim tenta seguir as pistas, fingindo ter uma pessoa que gostaria que fosse resgatada dos Estados do Sul. Detalhe após detalhe, Victor descobre que este caso é muito mais do que uma simples fuga proporcionada pelos percursos clandestinos de apoiantes (Underground Airlines).



Eis um livro que custou a avançar. Não por conta da escrita ou da perspectiva (que também neste livro é única e representada pela personagem principal), mas pela forma como as pessoas de cor são tratadas (quer nos Estados do Sul, quer no Norte), e pela peculiar perspectiva de Victor. Como ex-escravo, recorda-se, por vezes, do seu quotidiano em cativeiro, na infância, ou cataloga qualquer pessoa de cor pelo tom de pele (havendo dezenas de variedades) e outras características. Victor é um caçador treinado e trata os escravos fugidos como caça, ainda que não lhe caiba a ele fazer a recolha dos que descobre.
Nesta perspectiva, Victor é uma personagem central que, apesar de ser interessante, é pouco cativante. No seguimento da sua própria fuga e captura para reconversão, teve de desenvolver características que o ajudam nas missões, tendo de se mascarar, mentir, e enganar enquanto persegue escravos fugidos. Tem elevadas capacidades de dedução e segue as pistas com ligeireza e competência. É um sobrevivente, um camaleão por obrigação, e por isso mesmo, uma personagem difícil de simpatizar, ainda que a sua perspectiva seja compreensível.
Mas a personagem, claro, faz sentido no contexto, e é esse contexto que é difícil de ler. Por um lado temos os estados onde a escravidão é legal e, com o passar dos tempos, se modernizou e optimizou. É possível seguir os escravos com GPS, manter um registo informatizado e construir campos de escravos que se assemelham a prisões actuais. Neste enquadramento, os estados com escravos apresentam uma boa economia, ainda que existam leis para controlar as importações nos estados sem escravos.



Esta componente pode ser um pouco comparada com a nossa realidade, no sentido em que existem localizações onde o trabalho escravo persiste e onde é usado para baixar o custo de vários objectos, que são, então, comercializados em localizações onde o trabalho escravo é ilegal. Mas nem por isso estas localização sem escravos deixam de beneficiar das importações provenientes do trabalho escrav, ainda que este esteja camuflado.
Voltando à realidade retratada no livro, se a perspectiva nos estados com escravos é deprimente, a existência nos restantes não é muito melhor. Ainda que existam neles afro-americanos livres e independentes, é uma sociedade caracterizada por racismo e discriminação, onde é comum existirem comentários e acções violentas contra pessoas de cor.
Underground Airlines é, portanto, uma leitura de mistério e acção, onde se investiga o paradeiro de alguém, mas onde se desenvolvem, também, outros mistérios paralelos. É, também, uma leitura brutal, negra e depressiva. Não só por alguns episódios violentos, mas pela representação da escravatura que nos faz perceber o pouco valor que uma vida humana pode ter neste contexto.
Como última nota, deixo só o comentário que o livro trata sobre escravatura e possui uma personagem afro-americana, ainda que tenha sido escrito por uma pessoa aparentemente branca, o que pode ser um elemento sensível para alguns leitores.