Este volume é um dos mais recentes lançamentos da Norma Editorial e, apesar de toda a publicidade, a expectativa não era muita: uma história de crime e investigação durante o regime franquista, mas com uma capa que remetia para algo mais leve. O que encontrei foi sim, uma história de crime e investigação, mas que toca em vários pontos pesados do regime franquista, desde a acérrima defesa da diferença de classes, aos defeitos da perfeita família tradicional, temente a Deus.

A história

O volume centra-se em dois jornalistas que investigam uma série de assassinatos recentes. No local dos crimes encontram sempre o mesmo médico legista, acompanhado por uma jovem rapariga e um investigador duro. As várias mortes parecem estar associadas a um grupo de médicos com as teorias da época – os desvios da suposta normalidade poderiam ser curadas com operações cerebrais e choques, a linhagem dos ricos produziria seres mais belos e intelectualmente dotados, enquanto que a linhagem dos pobres produziria idiotas feios.

A história segue, sobretudo, o jornalista mais jovem, Léon Lenoir, criado pelo tio militar, fervoroso adepto do regime fascista que regressa a Madrid para trabalhar. Em casa do tio não encontra a prima mais velha e percebemos que terá feito algo que resultou no seu afastamento da família. Léon revela alguma rebeldia que terá aprendido a esconder, mas também alguma ingenuidade na forma como acha que as notícias podem ser escritas – algo que terá de se confrontar.

Por oposição, o jornalista mais idoso, não totalmente conformado com a forma como as notícias são limpas de referências para dar a impressão de uma sociedade mais ligada aos ideais franquistas, vai manobrando no pouco espaço que tem, para descobrir a trama por detrás das várias mortes.

A narrativa

Contrapaso começou com inspiração no El Caso, um semanário espanhol que se tornou conhecido ao apresentar casos peculiares (como o de Jarabo), tendo a autora intenção de contar como os jornalistas trabalhavam na altura, entre a censura e o dever de informar. Mas foi recentemente lançada uma série televisiva com a mesma temática, pelo que a autora deu a volta à narrativa para apresentar Contrapaso. Este foco nos jornalistas permite questionar a forma como as notícias são trabalhadas e apresentas ao grande público, mostrando-se a manipulação ou simplificação por que passam, para que sejam mais coerentes com o que pessoas de poder pretendem que seja passado.

É impossível ler Contrapaso sem destacar o retrato da sociedade franquista dos anos 50, onde a perspectiva da família tradicional em que as aparências têm papel principal, se confronta com tudo o que a suporta. A investigação por parte dos jornalistas permite visualizar uma sociedade menos romantizada e ideal, mostrando-nos como os cargos de influência e poder, mantidos entre as mesmas famílias, são usados para bom proveito de alguns, em detrimento da maioria da população.

A censura constante, dos meios de comunicação e dos livros, pretende manter a ideia de uma realidade pia e perfeita, onde não existe lugar para qualquer desvio ou diferença à norma. O lugar da mulher é no lar, criando os filhos e cuidando da casa. O lugar do homem é como pai de família, sustentando-a, e mantendo-a dentro dos limites da moralidade. Os poderosos enriquecem e os pobres trabalham, não existindo esperança na inversão de papel. Mas nos bastidores de toda esta rigidez moral encontramos a degradação humana – as mulheres são violadas, os interrogatórios tornam-se violentos, os ricos escapam dos crimes que cometeram, as crianças roubadas, a sexualidade de todos é reprimida, mas sobretudo a das mulheres ou dos homossexuais. É, sem dúvida, um retrato angustiante de um passado não assim tão distante, que choca pela violência física e moral.

Outro dos detalhes que se destaca nesta história é que, apesar das diferenças políticas, as personagens apresentam outras dimensões – o jornalista mais velho é falangista, mas nem por isso concorda com alguns dos aspectos daquela sociedade, mostrando que, também ele, e apesar das suas simpatias políticas pode ser considerado, pelo regime, um inimigo.

Estes detalhes não são, no entanto, o cerne da história. Contrapaso é um thriller, uma história de investigação criminal em que os dois jornalistas investigam os assassinatos por diversos meios. Esta investigação, seguida na perspectiva dos jornalistas, permite dar movimento e fluidez à narrativa. Os anteriores detalhes que referi, que caracterizam a sociedade, fazem parte do cenário e podem ser apreendidos através das conversas e dos seus significados velados, das expressões faciais ou da tensão corporal em relação a determinados factos. Neste sentido, é uma história que me surpreendeu pela positiva.

Apesar de toda a investigação demonstrada na recriação da década de 50, diria que existe alguma simplicidade na forma como as personagens principais são caracterizadas. Sabemos alguns detalhes, percebemos algumas reacções, mas entre a investigação e as rápidas interacções, não existe suficiente exploração da dimensão da personagem para ficarmos cativados por elas. Atenção, a caracterização de personagens não é má, longe disso, mas comparando com a solidez que encontramos na base, destaca-se como o ponto mais fraco.

Para maior detalhe sobre as várias inspirações da autora, aconselho a leitura desta entrevista.

O desenho

A capa é relativamente simplista, quando a comparamos com o conteúdo. Mostra-nos três personagens entre dois ideais, que se unem por objectivos comuns, independentemente das suas ideologias. Mesmo o desenho das personagens não faz justiça aos desenhos que encontramos ao longo das várias páginas desta história.

Os desenhos apresentam um tom realista, com um óbvio objectivo em destacar as personagens e as suas emoções. Por um lado, as figuras são apresentadas com maior detalhe, por outro, parecem mais focadas do que os cenários em que se encontram. Por vezes, o cenário desaparece totalmente, dando-se maior ênfase a uma expressão ou a uma pista.

O desenho apresenta algum dinamismo e movimento. Por um lado, denota-se uma forte oscilação entre planos e perspectivas, que permitem, ora percepcionar uma sala inteira, ora focar nas expressões faciais ou nos gestos de um par de mãos. Estas oscilações são muito cinematográficas, conferindo, por vezes, alguns detalhes que recordam, ligeiramente, os tradicionais filmes de detectives ou filmes noir.

Conclusão

Apesar da intensa publicidade realizada pela editora, talvez por causa da capa, não tinha dado grande importância a este livro. Mas encontrei uma história que assenta numa intensa investigação da época que retrata, servindo-se desta base para tecer um thriller bastante competente (e não uso a palavra como se fosse de qualidade mediana, mas acima da média), movimentado e envolvente. A caracterização de personagens é o ponto mais fraco fazendo com que, mesmo assim, Contrapaso tenha sido uma excelente leitura.

(nota final – ainda que este volume funcione bem sozinho, existem referências a possíveis novas histórias com as mesmas personagens)