Para quem tem seguido o Rascunhos, não deveria ser surpresa que eu agora leio praticamente tudo o que apanho desta autora. Entre o fantástico e o terror, possui livros geniais (e outros menos), quase sempre com pitadas de humor negro que os tornam simultaneamente divertidos, empáticos e interessantes. Este, tal como vários outros da autora, apresenta o recontar de um conto mais clássico, neste caso trata-se da história A Rapariga dos Gansos.

A história apresenta-nos uma jovem rapariga, Cordelia que se apercebe lentamente que a mãe é pouco usual – uma feiticeira, capaz de controlar o corpo de outra pessoa, agindo e falando por ela. Isolada e crescendo no terror de se ver sem controlo de si própria, Cordelia opta por longos passeios a cavalo, servindo-se do animal para desabafar alguns detalhes da sua vida e alguns pensamentos mais íntimos.

Mas há-de haver um dia em que a sua vida sofre uma reviravolta. Em vários sentidos. Por um lado descobre que o cavalo é o familiar da mãe (criatura mágica que acompanha o seu feiticeiro). O homem que sustentava a mãe recusa-se a continuar, resultando na chacina de toda a família às suas próprias mãos (ou não estivesse o homem a ser controlado pela mãe feiticeira). Em busca de outra fonte de sustento, a mãe consegue fazer-se convidar para a casa de um nobre menor, levando Cordelia consigo. O plano é relativamente simples – conseguir que ambas casem com nobres. Mas Cordelia, que nunca conviveu muito com alguém, vai ter algumas dificuldades em adaptar-se e em interagir da forma esperada pela mãe.

Depois de ler o livro e um resumo do conto clássico dos Irmãos Grimm, diria que parte o nome de algumas personagens e alguns contornos muito soltos, as duas histórias são bastante distintas. No conto clássico, a rapariga é uma jovem princesa que se vê enganada pela criada. Aqui, a jovem viaja com a própria mãe, com a expectativa de ganhar os favores e a riqueza de pequenos nobres. O envolvimento dos gansos também é totalmente diferente, e o cavalo, mágico em qualquer das vertentes, participa de forma bastante distinta no futuro da jovem.

A Sorceress comes to Call é, como outras histórias da autora, uma narrativa relativamente simples, que apresenta sobretudo a perspectiva de uma personagem. Neste caso, existem alguns episódios com outras personagens importantes para o desenvolvimento da narrativa, demonstrando-nos alguns pensamentos e preocupações. Estas outras perspectivas são interessantes para justificar a apresentação de outros episódios, outros detalhes que a jovem rapariga não poderia estar a par.

Cordelia é uma jovem assustada e envergonhada, que não está habituada a conviver, a ser servida por criados e a ter a possibilidade de agir por si. Isto é evidente quer para o leitor, quer para as personagens que vai passar a conhecer ao passar a habitar, com a mãe, na casa de um nobre menor. Entre estas outras personagens destaca-se a irmã do pequeno nobre, Hester, uma mulher pouco jovem que, entre as dores nos joelhos e os gansos que cuida, começa a aperceber-se de que algo estará muito errado com a viúva que o irmão recolhe.

Hester não ficará parada. Simpatizando com a pequena Cordelia, resolve dificultar as pretensões da viúva, convidando um grupo de velhos amigos para uma festa que se alarga a alguns dias, em sua casa. Para além de um casal de amigos, recebem a visita de uma outra viúva, uma pessoa fantástica e divertida que outrora namorou com o irmão de Hester; e de um homem que ainda nutre interesses por Hester (aliás, é mútuo, ainda que Hester não queira admitir).

A narrativa oscila entre retratar o tratamento abusivo de Cordelia, com uma mãe controladora, literalmente manipuladora e psicologicamente traumatizante, e interacções mais positivas que se vão desenvolvendo com outras personagens, que, percebendo alguns detalhes nas interacções maternas, vão criando espaços seguros para a jovem. Para além desta componente (relacionamentos abusivos), a narrativa apresenta momentos mais gore, com a descrição de mortes que vão sendo apresentadas de forma chocante, com detalhes sangrentos e violentos.

Com estas duas vertentes, poderíamos pensar que o livro seria uma leitura pesada e negativa. Nem por isso. Apesar dos contornos negros e dos acontecimentos catastróficos, a autora consegue desenvolver a história dando-lhe uma aura acolhedora, positiva e esperançosa, que compensam os momentos passados ao longo da narrativa – e ainda que nem tudo acabe bem (nem todos os envolvidos têm finais felizes), existe uma resolução que promete espaço para sarar dos acontecimentos relatados.

A Sorceress comes to call é uma história bem construída e fechada, em que a autora aproveita alguns elementos do conto clássico dos irmãos Grimm para construir uma narrativa mais actual, com uma execução original. Apesar dos elementos negros, consegue balancear com elementos mais positivos ou acções mais correctas que resolvem a narrativa de forma mais construtiva, resultando num final que confere satisfação.