Julgo já não ser novidade que o João anda focado na leitura dos nomeados e premiados pelo Ursula K. Le Guin (foi algo que ficou evidente durante as Escolhas do Ano no Fórum Fantástico) mas, entre as várias coisas interessantes de que tem falado, mais recentemente fiquei interessada neste It Lasts Forever and then it’s over – o resultado? É uma das coisas mais estranhas que li no género nos últimos tempos.

A narrativa leva-nos para um cenário comum, mas apresenta-nos uma perspectiva pouco usual. Somos confrontados com mais um apocalipse zombie, onde a morte espreita a cada esquina. Mas, desta vez, a personagem já está morta, havendo uma decomposição psicológica e física que a acompanha. De nome incerto, a mulher zombie tenta recordar o que a mantinha ligada à vida, memórias que se esfumam ainda que ela saiba que existiram, deixando uma sensação de angústia e vazio.

Os mortos-vivos aglomeram-se em existências frustradas, procurando sentido e significado nas suas existências, tentando criar símbolos que substituam as memórias que se vão esfumando. Mas também estes simbolismos se vão desvanecendo. É nesta tentativa de manter referências (de forma mais ou menos consciente), existência e significado que a personagem, depois de perder um braço, que manobra como um objecto, adiciona o cadáver de um corpo no seu interior, numa sucessão de episódios grotescos, surreais, mas também mentalmente desconexos e quase absurdos.

É neste absurdo, carregado de humor negro que encontramos os momentos cómicos ou ridículos que intercalam os momentos introspectivos, quase filosóficos, bem como os momentos dementes e violentos. Porque, se, por vezes, esquecemos que a personagem é um zombie, existem também episódios que nos recordam de forma bastante violenta a necessidade de comer seres vivos, e, claro, humanos, mas, nesta narrativa, os ataques são visualizados pela perspectiva de quem come, e demonstra, em simultâneo, inveja para com os vivos.

Apesar da necessidade de comer, o zombie não está propriamente vivo, pelo que não tem objectivos nem destino, deambulando para locais menos povoados, imobilizando-se durante longos períodos de tempo, contemplando a infinidade de forma pouco consciente enquanto, à sua volta, o tempo passa. Sem recordação ou propósito, sem passado nem futuro, o zombie possui uma perspectiva muito peculiar que é explorada neste livro.

It lasts forever and then it’s over pega num conceito já muito explorado na indústria de entretenimento e explora-o de forma distinta, produzindo um texto difícil de catalogar e de explicar. Não deixa de ser uma narrativa zombie e de apresentar momentos mais grotescos, mas consegue ter alguns detalhes de humor negro para o espectador / leitor, ao mesmo tempo que explora identidade, memória e necessidade. Novamente, terminando como comecei, é uma das coisas mais estranhas que li nos últimos tempos.