Depois de lançar um detective do oculto peculiar (O Deus das Moscas tem Fome), e um conjunto de histórias em ode ao Noir (Lisboa Noir), eis que Luís Corte Real surge com um livro que parecia bastante diferente em tom e em tema – não só por se enquadrar no género fantástico, com ogros e seres humanos, mas por se centrar numa jovem humana.

A história começa por nos apresentar os momentos em que uma rainha humana, ferida, transmite a sua bebé a um guerreiro ogre, libertando-o e esperando que tal o leve a cuidar da criança. Assim acontece e anos depois conhecemos então Runa, uma jovem e selvagem menina que se envolve em múltiplas escaramuças com outras crias ogres.

Kkar, o destemido guerreiro que a recebeu, abdicou da vida de guerras, e passou a ser um servidor, dedicando-se a criar a criança como sua. Ainda assim, a interacção entre os dois é sempre ligeiramente tensa, com Kkar a exercer a sua autoridade, mas com Runa a desobedecer continuamente. Até ao dia em que Kkar não verá outro remédio senão enviá-la para os pântanos para ser aprendiz de feiticeira. Tal será uma forma de lhe dar um objectivo, mas também de a afastar das interacções quezilentas com as crias que rapidamente atingirão um tamanho considerável.

Reinos Bastardos é uma leitura fluída (com excepção para dois ou três momentos mais complexos) que vai oscilando entre pequenas desventuras da personagem, onde nos familiarizamos com a sua energia e personalidade, e momentos mais tensos, onde existem confrontos com e entre os Ogros. A narrativa foca-se, sobretudo, em Runa, ainda que apresente, em momentos específicos, a perspectiva de outras personagens, mas de forma transitória. Estas outras perspectivas incidem sobretudo sobre Runa e concedem visões mais maduras dos acontecimentos. Neste aspecto, como em vários outros livros de fantasia, considero que poderia ter sido interessante explorar um pouco mais a individualidade das restantes personagens.

A história usa figuras fantásticas pouco comuns, os Ogros. A sua sociedade é algo rudimentar, separada entre guerreiros e servidores, estando os primeiros autorizados a pegar em armas, e estando os segundos restritos à apanha de alimentos e a servir os primeiros. Adicionalmente a esta estratificação evidente, existem algumas regras muito próprias que originam decisões e desenvolvimentos muito específicos à forma de pensar dos Ogros.

Em termos mitológicos, os Ogros possuem ensinamentos milenares que serão transmitidos a Runa como aprendiza, ainda que existam peças em falta no puzzle. Algumas dessas peças serão reveladas ou exploradas quando Runa tem de fugir para território desconhecido. É nesta sequência que aparecem então os tais momentos mais complexos (e menos fluídos) em que existe todo um outro nível mitológico que é introduzido num curto espaço de tempo, intensificando a exposição do leitor a mais informação.

Esta experiência concede mais conhecimento (ao leitor e a Runa) mas também um momento de transformação que, de alguma forma, torna Runa menos reconhecível e envolvente, sobretudo na fase final, em que o livro termina em aberto, com uma porta para um segundo volume onde (espero) iremos ganhar outra perspectiva sobre a mitologia deste Mundo.

Depois de nos ter surpreendido com um detective do oculto de aura bastante negra, Luís Corte Real apresenta uma fantasia arisca mas envolvente, com uma mitologia muito própria. É uma leitura fantástica fluída e cativante que nos deixa a pensar no segundo volume e que ganha facilmente o seu lugar entre o que de melhor se fez em Portugal no género da Fantasia.