Peguei neste livro numa daquelas (agora raras) visitas a uma livraria. O título era estranho, mas a narrativa captou-me interesse desta a primeira página. A personagem principal, já idosa, recebeu de uma amiga um instrumento que lhe permitia ouvir melhor – a tal corneta acústica. Usando-a sem conhecimento da família, tomamos conhecimento da desumanização da idosa, vista como um monstro de baba, que se arrasta pela casa e assusta as visitas.

Entre os argumentos de lhe darem uma melhor vida (a narrativa que contam para si mesmos e para o filho para justificar o que se sucede) e as vantagens de ter mais um quarto e menos uns sustos perante a sua figura, colocam-na no lar mais barato que encontraram. Trata-se na realidade de uma espécie de seita religiosa, onde o responsável do lar, figura paternal, tenta incutir nas velhotas os ensinamentos de algo não completamente descritível. A entrada de mais uma velhota vai alterar ligeiramente o quotidiano e acrescentar mais uma dose de caos a todo um ecossistema já inenarrável.

A história começa com uma vertente muito quotidiana, até reconhecível, onde a coexistência de três diferentes gerações, numa mesma casa gera conflitos e desconforto. A narrativa lida, também, com a desumanização e desvalorização do idoso, visto não como um ser humano, mas como alguém diferente e irreconhecível, desconfortável de olhar por nos recordar dos efeitos da idade. Apesar da seriedade do tema, estes episódios conseguem ser compostos por um humor peculiar e mirabolante, onde existe sempre mais um detalhe que nos surpreende.

A entrada no lar acrescenta uma série de variáveis caóticas, onde se incluem velhotas camufladas, mortes e um retrato de uma freira de ar pouco angelical, que na realidade vai ser o início de vários relatos pouco religiosos, que cruzam freiras, assassinatos e desventuras sobrenaturais. A par com isto, o responsável pelo lar e a sua respectiva, parecem completamente incompetentes em gerir o caos que se estabelece.

Confesso que gostei bastante mais da primeira parte do livro, mirabolante em doses apropriadas, com um curioso confronto de perspectivas, onde os valores se revertem. A segunda parte, menos realista, vai escalando numa sucessão de episódios cada vez mais surreais, onde tudo pode e vai acontecer na procura por liberdade e autonomia. Quase todas as personagens possuem um segredo, uma alteração ou uma revelação, afastando-se a narrativa de qualquer realismo e entrando no reino da demência absoluta.

Procurando mais informação sobre a autora, percebemos que era também artista, uma das últimas do surrealismo, tendo convivido com artistas como Joan Miró, Salvador Dalí, Pablo Picasso e Max Ernst. As suas obras focavam-se principalmente no realismo mágico e na alquimia, apresentando a sexualidade feminina como ela a vivia, por oposição à representação por artistas homens.

De destacar, também, o internamento num asilo durante três anos, onde foi submetida a terapias desumanos, abusos sexuais, drogas alucinógenas e condições de higiene questionáveis. Estes interesses e vivência encontram-se retratados, também neste livro, através da perspectiva da personagem principal, percebendo-se um pouco melhor os detalhes surreais da história.