Apesar de não existirem exemplares disponíveis à data do Fórum Fantástico, esta pequena antologia foi um dos lançamentos que pudemos assistir no evento. O contexto é simples mas interessante, histórias passadas no interior português, em aldeias ou vilas, em que as lendas transmitidas oralmente ganham consistência em monstros que assombram os pacatos habitantes.
Publicado pela Estronho, passados alguns meses do evento lá chegaram os exemplares, e foi marcado lançamento próprio, também na Biblioteca de Telheiras, com presença de grande parte dos autores. Neste evento foi-nos explicada a origem da antologia, e cada um dos autores presentes falou um pouco do monstro escolhido.
A antologia começa com Ao meio-dia de Carlos Silva, um início auspicioso onde um velhote de capote deambula por entre os terrenos, retirando o fulgor das terras cultivadas, aspirando energia e transformando tudo em que toca em sítio inóspito. As suas razões bem como a sua origem são desvendados nas páginas seguintes, numa história que se enquadra bem no espírito supersticioso do interior.
A segunda história, Duelo de Lendas, é da autoria de Valentina Silva Ferreira, a organizadora da antologia e decorre na Madeira, apresenta-nos não um, mas três monstros que irão confrontar-se para influenciar o dormir de uma jovem doente que tenta dormir: Insonho, João Pestana e Tardo. Até que se decidem a tentar à vez.
Já em Na Escuridão de Víctor Frazão um rapaz citadino segue incauto a rapariga que conheceu há poucos dias para uma Lagoa que se diz povoada por seres inexplicáveis. Basta a promessa de sexo com uma rapariga mais velha para que a siga, cego a temores justificados. Em A Voz de Lisboa de André Pereira uma nova catástrofe se abata sobre a cidade, relembrando o terramoto de 1755.
A quinta história é a de título mais longo, A noite em que o bicho-papão encontrou Kafka no cimo de um telhado. Da autoria de Francisco J.V. Fernandes segue um velhote enfermo que entre o sono da doença relembra a infância marcada pelo medo do bicho-papão, balanceado pelo conforto da lengalenga proferida todas as noites pela avó. Uma história forte e coesa que é uma das melhores do conjunto.
De Ana Luiz, Sant’Iroto é mais uma história que capta bem o receio do sobrenatural, acompanhando uma menina que, tomando conhecimento de uma história rural, resolve pregar uma partida aos tios, chamando por sarilhos em noite de lua cheia. Por sete encruzilhadas, por sete vilas casteladas de Miguel Raimundo aproveita o mito dos lobisomens ou de outros metamorfos amaldiçoados que ainda se crê habitarem as aldeias.
O penúltimo conto é de Inês Montenegro, Ao sexto dia, e apresenta-nos uma sequência de mortes suspeitas. As vítimas, homens de vida reprovável, acabam mortos numa encruzilhada sem que haja grande explicação. Em Sangue, suor e … unhas de João Rogaciano, são também várias as vítimas que padecem de forma inusitada, exangues e sem unhas, relembrando-se uma velha história na povoação de um ser que precisaria das proteínas existentes em ambos (sangue e unhas) para sobreviver.
Se há algo que se repara assim que se pega neste livro, é o belíssimo aspecto. A separar cada história encontra-se uma pequena apresentação de cada autor, acompanhada por uma imagem transfigurada do mesmo, no monstro a que se dedicaram. Apenas as páginas separadoras se encontram a negro, as restantes são brancas.
Em relação aos contos, nem todos se enquadram no ambiente rural, como A Voz de Lisboa, uma das histórias que menos me impressionou. Já o conto de Francisco Fernandes é um dos mais coesos e equilibrados, uma história que explora mais o lado humano em torno do temor instigado contra uma terceira figura, destacada do meio familiar, criada apenas para fazer vergar a vontade dos mais novos.
Por sete encruzilhadas, por sete vilas casteladas capta bem o ambiente rural e a lenda dos transmorfos que persiste nos pequenos viralejos, mas tem partes de leitura conturbada pelo intercalar das ladainhas de linguajar antigo, com um discurso mais coloquial – ainda assim é uma história engraçada que retém algum do conhecimento supersticioso.
Ao meio-dia é também um conto coeso e bem composto, apesar de curto, que, sem envolver muitas personagens, consegue transpor o ambiente rural. Já Ao sexto dia relembrou-me uma história de outros tempos em que o diabo anda à solta e as maldições aparecem onde menos se espera. Finalmente, o conto Sangue, suor e … unhas é quase uma história de detective, bem composto e divertida, onde não faltam os pequenos episódios rocambolescos.
Em suma, uma antologia bem composta e bastante aconselhável, onde se revivem as crenças antigas transmitidas oralmente por sussurros, conhecidas por todos os habitantes das aldeias, mas nunca faladas abertamente, por receio de que a simples menção a tais coisas atraía os males que por aí andam.
Obrigado pela crítica. No meu conto o narrador é uma bruxa vivendo num tempo onírico situado topicamente num passado ancestral, por isso teria de falar/narra daquela forma. O tema do conto não são metaformos, essa é versão anglo-saxónica das nossas lendas. Em Portugal o lobisomem sempre foi uma pessoa amaldiçoada que se transforma em qualquer tipo de animal de grande porte, geralmente burro, gado muar, javali, por vezes, mais raramente cão ou até lobo. Esta lenda portuguesa um pouco por todo o país, cuja investigação nos etnológos do século XIX revela. A nossa lenda lobisomem difere de todas as outras por isso mesmo.
Miguel Raimundo
Boa tarde 🙂 Obrigada pela clarificação 🙂
Só de ver as fotos fiquei com vontade de pegar no livro 😛
é verdade 🙂 está muito bom graficamente ! A editora é brasileira e pelo que parece costuma ter algum cuidado com as edições (os autores e a organizadora são portugueses, já agora).