Num país onde se lê pouco e os livros servem para decorar as estantes (principalmente as edições de capa dura), e quem lê olha com desdém (e alergia) para a ficção especulativa, como se a ficção científica só tivesse navezinhas no espaço aos tiros e a fantasia fossem apenas histórias para criancinhas, há que saber dar a volta e aproveitar as próprias manhas editoriais para mostrar que estes géneros trazem muito mais.

Manhas editoriais? Sim. Caso não tenham reparado, até vão sendo lançados alguns bons livros em português , mas sob descrições vagas ou capas pouco alusivas à temática, dando-lhe uma aura mais filosófica para poderem passar nas malhas dos media ou do pessoal que não quer ser apanhado a ler parvoíces.

Até porque ambas permitem filosofar e discorrer sobre a espécie humana, constituindo por vezes reinterpretações do mundo que nos rodeia, ou utilizando elementos foram do comum para tecer belas histórias, uma forma de escapar às barreiras da nossa realidade, aproveitemos então para pôr os mais insuspeitos a ler ficção científica e fantasia. As escolhas abaixo têm como filtro edições ou reedições recentes.

estação onze

1. Estação Onze – Emily St. John Mandel

Retirem de qualquer descrição a palavra apocalipse (ou outras derivadas). A ideia principal é a de que o ser humano é muito mais do que sobrevivência pura e dura, e a de que precisamos tanto de manifestações artísticas como de pão para a boca. A falta destas manifestações levará à quebra de qualquer civilidade.

Esta leitura que foi, sem dúvida, uma das melhores de 2014 (Retrospectiva 2014) apresentando-nos um mundo dizimado pela doença, onde os poucos seres humanos que restam criam pequenas comunidades, cada vez mais desconfiadas e isoladas. Viajando entre estas comunidades encontramos um grupo de teatro que apresenta as antigas peças, tendo como lema “Porque não basta sobreviver”.

segredo bosque velho

2. O segredo do bosque velho – Dino Buzzati

Porque fica sempre bem dizer que se lê Dino Buzzati, eis um livro fantástico em todos os sentidos, onde os elementos naturais possuem consciência e vontade. Apesar de ser um autor mais conhecido pelo livro O Deserto dos Tártaros, este é, a meu ver, mais envolvente e denso, com belas passagens em que o vento faz da floresta um instrumento musical, criando pequenas sinfonias.

historia de uma serva

3. A História de uma Serva – Margaret Atwood

Têm alguma familiar que só gosta de ler livros como Queimada Viva, Comprada, e algo do género? A História de uma Serva é muito mais do que parece transparecer o título. Felizmente não é verídico e apresenta-nos uma distopia onde o machismo cristão voltou a ganhar poleiro, assumindo ideias mais castradoras do que as vigentes na Idade Média.

As mulheres são reduzidas às funções básicas, mas sem que estas se sobreponham. Empregadas domésticas, esposas e parideiras – todas têm a sua função estanque. As empregadas são geralmente senhoras mais idosas que ajudam a cuidar dos rebentos, mas não os podem ter, enquanto que as esposas cumprem o papel de companheiras, sem saírem de casa. As parideiras engravidam totalmente tapadas salvo os genitais, não vá o homem gostar do que vê, e permanecem naquele lar apenas até cumprirem a sua função.