As adaptações para banda desenhada nem sempre são fáceis. O espaço para expor a história costuma ser mais reduzido, quer em número de páginas, quer na alternância com imagens que devem ocupar a maior área. Esta dificuldade costuma resultar num misto entre verborreias infindáveis e imagens pouco representativas ou que não acrescentam muito à capacidade de transmitir uma história.

Não é o caso de Auto da Barca do Inferno. Talvez por conta do formato do texto original, uma alegoria dramática, com muita interacção de personagens, esta adaptação funciona muito bem – de tripulante em tripulante, os que desejam embarcar para o Paraíso são encaminhados para outra barca. Todos se julgam dignos do céu, mas quando se expõem os vícios que perpetuaram em terra, é óbvio qual o caminho que devem seguir.

Recordando-me das leituras que realizei há algumas décadas de Auto da Barca, fica uma forte aura de ironia e caricatura, com Gil Vicente a ser particularmente pesado com os que deveriam ser o exemplo de bom percurso. Os do clero, que acham que, por o serem, têm entrada garantida junto das nuvens, cometeram várias infâmias e quebraram votos. Já os religiosos seguem a mesma lógica e, consequentemente, o mesmo caminho.

Esta mesma recordação está presente na construção desta adaptação, com o diabo a saltar de contente, tripulante após tripulante. Ironia e sarcasmo são dois elementos bastante presentes na forma como se endereçam os que desejam embarcar.

O desenho de Joana Afonso é expressivo, como lhe é habitual. As cores são, por vezes, demasiado densas (o que lhe é, também, habitual) mas existe suficiente contraste para se conseguir percepcionar o desenho. O texto apresenta o indispensável. A combinação dos dois cria um volume dinâmico, fluído e divertido que resulta bastante bem como adaptação.