
Há largos anos que não lia um livro de Peter S. Beagle. Julgo que o mais conhecido será mesmo O Último Unicórnio, que chegou a ter uma edição em português, ainda que fraca em aspecto. Para além deste li uns quantos contos, uns dispersos, outros em colectâneas, sendo a última Overneath. Confesso que, no caso do presente livro, o que me cativou foi mesmo o título, que me recorda o título de um jogo de tabuleiro social, You’ve got crabs, e que cria expectativas cómicas.
Curiosamente, percebi agora que a publicação deste livro este envolta em grande polêmica há alguns anitos, com a oscilação entre várias editoras, e continua a estar, mas por motivos bastante diferentes. Pelos vistos, o livro terá sido uma criação de Connor Cochran e Peter S. Beagle, mas o último estará a tentar ter o crédito total pela obra. A edição inglesa parou de ser comercializada e a polêmica continua. Se gostarem de polêmicas, vejam o primeiro link (aqui está outra vez), onde Connor Cochran explica nos comentários a situação. Há informação para acções de tribunal e toda uma salgalhada de detalhes. Bem, autorias à parte, tenho a dizer que é uma história formidável para quem gosta de fantasias que conseguem quebrar os clichés do género e entregar uma narrativa divertida, irónica, e mirabolante.
Como nas mais clássicas histórias fantásticas, existem príncipes de terras distantes prontos a serem heróis, princesas sonhadoras e dragões para matar. Mas tirando estes elementos gerais, os detalhes distanciam a história de qualquer outra fantasia cliché. O príncipe efectivamente tem o aspecto perfeito que seria de esperar, mas preferia ficar em casa confortável do que partir em aventura. Por isso mesmo, o pai fá-lo acompanhar de um pajem que, na prática, é quem orienta o jovem e navega nas necessárias politiquices. Como o próprio diz a meio do romance, os membros da nobreza querem mesmo é que alguém lhes diga o que fazer, para se poderem libertar das constantes responsabilidades.
Já a princesa, que é um pouco mais autónoma e corajosa do que seria de esperar, uma figura de acção, recusa pretendente atrás de pretendente, nas mensais cerimónias. Mas quando, vestida à civil encontra o príncipe, rapidamente decide que é com ele que se irá casar. E tudo parece perfeito, não fosse tudo uma ilusão. O príncipe segue as instruções do pajem para pedir a mão da princesa, mas apenas após se fazer digno de tal honra, vivendo uma aventura e matando um grande dragão.



Em paralelo, Gaius Aurelius Constantine Heliogabalus Thrax, ou Robert como é mais fácil chamar-lhe, é chamado ao castelo para libertar a praga que assola as paredes – pequenos dragões de todas as espécies, que terá de matar ainda que não o queira. É que Robert herdou a profissão do seu pai, mas estabelece facilmente laços afectivos com as criaturas, principalmente aquelas que, no castelo, são minúsculas e, até, simpáticas. Dá-se portanto o acaso de estar no castelo quando se organiza a expedição para que o príncipe se faça herói, sendo chamado para integrar a comitiva, dados os seus conhecimentos sobre dragões.
Mas pouco corre, claro como esperado. O príncipe tem mais medo do que alguns dos seus seguidores, e é na verdade Robert que acaba por matar os dragões, ainda que, claro, os créditos sejam para o príncipe – um plano que Robert alinha facilmente, até porque se quer tornar pajem e não herói, usando as circunstâncias para tentar uma tão esperada mudança de carreira. Existirão, claro, maiores vilões para enfrentar e outros dragões para exterminar.
Ia começar por comparar a escrita deste volume a outros do mesmo autor. Mas já nem sei se o posso ou devo fazer. Bem, digo apenas que a escrita é elegante, contida mas pouco fluída, com detalhes que enriquecem a história e lhe fornecem uma aura cómica, sem se alongar demasiado. Está muito bem escrito e é um livro que deve ser lido com atenção, dadas as várias tiradas indirectas que existem nas mais diversas circunstancias.
É, para além da escrita elegante, uma história de aura cómica, que usa as circunstâncias cliché para nos surpreender e tecer detalhes antagónicos à expectativa e ligeiramente mirabolantes. A princesa pode-se salvar a si própria. No reino, o rei na realidade manda menos que a rainha. O príncipe preferia estar a dormir. O exterminador de dragões prefere brincar com eles e mudar de profissão. Mas existem mais detalhes diferentes naquela sociedade, como os homens não irem à escola.
Apesar destes detalhes, a linha narrativa é relativamente simples, possuindo duas ou três reviravoltas, contidas e lógicas dentro do seguimento. A história é contada quase sempre na expectativa de Robert, apesar de existirem alguns episódios na perspectiva de outras personagens como a princesa, e outros ocasionais, focando-se em personagens menos centrais.
Tal como o título indica, existem algumas tiradas cómicas, seja pela interacção inusitada e caricata entre personagens, seja por alguns pensamentos fora do expectável que conferem uma aura leve e divertida, apesar dos dramas pessoais de cada personagem. Os dragões, em si, oscilam entre minúsculos, irritantes e tolos (principalmente na parte em que são uma praga e as interacções com eles recordam as que temos com uma infestação de formigas) e enormes, perigosos e inteligentes.
I’m afraid you’ve got dragons é uma leitura fabulosa, bem escrita, e divertida, aconselhável a quem pretenda uma leitura leve, com detalhes de fantasia. Não é muito original em elementos fantásticos, usando os clichés do género para se resumir em construção do mundo, ao mesmo tempo que os deturpa para criar os elementos cómicos e surpreendentes.
