Eis que a Relógio d’água me volta a surpreender com a publicação de um livro de ficção científica actual e recente, vencedor dos prémios Hugo e Nebula. Trata-se de uma história relativamente pequena, com pouco mais de 100 páginas, mas que promete movimento e tecnologia em cenário futurista. E cumpre.

Sistemas em estado crítico – diário de um assassiborgue centra-se num andróide que terá hackeado o seu próprio sistema e se terá libertado dos comandos centrais. Equipamento alugado por uma das grandes empresas, este andróide integra uma missão de exploração de um novo planeta, com um grupo de cientistas.

Composto por partes orgânicas e inorgânicas, a libertação dos sistemas centrais permitiu que este andróide tenha hábitos pouco usuais, como ver séries nos tempos livres. Em paralelo, desenvolve empatia para com os membros humanos do grupo. Quando uma estranha criatura põe em risco dois deles, não hesita em os salvar, mesmo contrariando ordens do sistema.

Mas é exactamente esta oposição que vai originar uma desconfiança no sistema central, mas também sobre as particularidades do andróide. Quando, finalmente, se percebe que estarão mesmo a ser atacados, o andróide será decisivo para a sobrevivência de todos, não só por conta das suas capacidades de batalha, mas por se ter tornado uma entidade independente.

Este livro consegue a proeza de nos manter sempre em estado de alerta. Existe sempre alguma tensão e acção, seja por confronto com a fauna local, seja pela investigação sobre as sabotagens que rapidamente se acumulam. Existem poucos momentos pausados ou introspectivos, fazendo com que a narrativa se leia rapidamente.

A história é apresentada pela perspectiva do andróide, que vai contando um pouco mais de si e dos acontecimentos anteriores a esta missão. Também existem elementos que vão sendo revelados nas conversas. Esta parte informativa é entregue de forma doseada e elegante, sem apresentar o famoso “infodump”, e mantendo uma narrativa intrigante, ritmada e interessante.

Sistemas em estado crítico recorda algumas outras narrativas que utilizam um cenário inóspito, desconhecido e alienígena para criar uma narrativa carregada de mistério e tensão, como Mickey 7, ou The Martian de Andy Weir. No entanto, distancia-se destes por não se debruçar sobre os relacionamentos na colónia (como Mickey 7) mas ainda assim não apresentar apenas uma única personagem. Distingue-se, claro, também, por não se centrar num humano.

Esta componente (a não centralização num humano) é tangencialmente usada para tocar no assunto do livre arbítrio e da inteligência (artificial ou semi-artificial). Se se libertou de um sistema central, e consegue tomar decisões (acertadas) sozinho, de que forma é que este andróide pode ser remetido para a escravidão, com sucessivas limpezas de memória? 

Acredito que esta história possa estar entre as melhores do ano. Apesar de não apresentar uma grande complexidade, consegue a proeza de desenvolver o seu enredo de forma limpa, fluída, dinâmica e envolvente, com pitadas de humor irónico, o que me agradou bastante durante a leitura.