Nomeado várias vezes, e premiado outras tantas, este livro apareceu em várias listas de melhores do ano. O título, em conjunto com o aspecto e todas estas indicações despertaram-me a curiosidade – a sinopse cruza referências à Segunda Guerra Mundial, com filmes de série B (monstros) e a capa apresenta um aspecto peculiar. O que encontrei foi uma leitura diferente, nem sempre fácil, um labirinto onde os episódios narrados possuem mais do que uma camada.

Karen Reyes é uma menina que cresce na cidade de Chicago dos anos 60. Mas não uma menina qualquer. Criada pela mãe, também peculiar que se destaca pelas inúmeras superstições e ditados semi inventados, Karen é uma fã de horror, sobretudo das histórias e referências pulp, criando uma realidade inventada onde existem inúmeros monstros e onde ela própria é um.

Quando a vizinha, uma personagem adorada, é encontrada morta, Karen decide investigar por contra própria assumindo um papel diferente. A investigação irá levá-la a confrontar-se com o holocausto, a prostituição infantil, e, o valor da vida feminina.

Este primeiro livro de My Favorite Thing is Monsters está escrito como uma espécie de diário criado por uma criança de 10 anos, alternando letra manuscrita, com o que parecem colagens e desenhos, não só das acções da personagem, mas também dos monstros que imagina e sobre os quais lê nas revistas pulp. O resultado é uma mistura diferente e original, por vezes excessiva mas cativante, noutras com páginas brutais e originais.

A narrativa apresenta a perspectiva de uma criança de 10 anos que se agarra à sua inocência (manobrando a realidade que a rodeia) ao mesmo tempo que se apercebe que o mundo é mais complexo do que pensa. A inocência vai ser retirada, não só pelo crescimento e quotidiano, mas por circunstâncias próximas e familiares que fazem Karen confrontar-se com os aspectos mais feios da realidade.

Para além da componente monstruosa, Karen desenvolve uma outra identidade enquanto detective, principalmente quando investiga a morte da vizinha. Nesta componente desenvolve-se alguns diálogos imaginados que remetem para os detectives hard-boiled, o que é apropriado, dada a decadência das descobertas que Karen vai realizado.

É que a vizinha era uma sobrevivente do holocausto. É assim que Karen se confronta com as invasões dos nazis e com as consequências para as prostitutas, percebendo-se a crueldade para com as mulheres e o seu uso, tanto na figura de “simples” prostituta, como vidas sem valor em cerimónias fúteis que visam destacar a importância doentia de figuras de aparência social decente. O tráfego humano existe. A prostituição infantil também.

O confronto com o racismo é inevitável. Não só através da investigação que realiza, mas também porque, a narrativa dá a entender que o pai dela (e do irmão mais velho) não será caucasiano nem ariano. Mexicano? Mais do que uma vez percebemos existir racismo na cidade de Chicago dos anos 60, sobretudo para com o irmão que terá herdado mais genes parentais.

Mas existem mais motivos para que Karen imagine tanto e se refugie nos monstros e nas investigações. É também uma forma de fugir de si própria e de não se assumir. Karen não é uma rapariga típica, nem desenvolve os gostos e as características esperados de uma criança de 10 anos. Karen não encaixa na norma, reconhece isso e acaba por usar os monstros como uma característica extrema que esconde uma diferença mais pessoal. Como assumir que se é diferente, principalmente numa cidade tão negativa perante as diferenças e tão afastada das questões de género?

Entre tudo isto, encontramos as visitas ao museu de arte. O irmão de Karen leva-a recorrentemente, levando a que várias obras ganhem novas versões e uma vida na imaginação da jovem. O resultado distingue-se visualmente.

A narrativa apresenta, portanto, várias camadas. Existe o que é dito e percepcionado pela criança de 10 anos. E existe o que um adulto vê quando cruza referências e indicações que, não sendo óbvias para a jovem, são assustadoras e desmotivadoras. Infelizmente (para a personagem), a progressão narrativa não permite que Karen permaneça no desconhecimento e na inocência, havendo, muitas vezes, a revelação do que o adulto temia.

Esta banda desenhada apresenta um formato pouco tradicional. Para além das letras, o formato é bastante livre em várias páginas, com um aspecto mais de rascunho nalgumas, letra manuscrita, desenhos lápis, rabiscos no canto, elementos com aspecto de colagens. O resultado é quase tosco nalguns momentos, mas um tosco pensado e planeado que, apesar do aparente caos, resulta em páginas fenomenais.

Esta mistura de estilos e formatos leva a uma leitura mais lenta do que é habitual, pelo que a complexidade visual e o tipo de letras usados me levou a intercalar a leitura com outras mais leves, sobretudo em dias de trabalho. Não se perceba com isto que é uma má leitura. Pelo contrário. É um livro excepcional, duro e pesado apesar das aparências. Até traumatizante. E ainda assim, mal posso esperar para que chegue o próximo volume.