Depois de Giant e Bootblack, o terceiro volume, Harlem ainda consegue surpreender pela abordagem. Enquanto que o primeiro volume se centrava numa personagem quase silenciosa, remetida ao seu papel de trabalhador emigrante num novo país, e o segundo, apresentava uma abordagem mais revoltada, mas também bastante cliché no seu percurso, Harlem consegue ultrapassar os limites dos dois volumes anteriores e basear-se numa personagem que quebra com todos os pressupostos e se reinventa.
Em Harlem uma figura pouco evidente controla as ruas e o negócio das apostas ilegais. Stéphanie St. Clair, mais conhecida como Queenie, uma mulher negra que se liberta da escravidão e institui a lotaria clandestina nas ruas de Harlem. Mas o negócio é demasiado lucrativo e rapidamente existirão outras figuras mafiosas que farão guerra a Queenie, querendo uma parcela dos lucros. Mas Queenie tem, também, outros inimigos – a polícia que, para além de maltratar os habitantes afro-americanos do bairro, estão em missão óbvia de perseguição à figura desafiante.



Queenie não é apenas uma mulher que se destaca, demasiado bem sucedida, demasiado orgulhosa. Mas também uma apoiante dos habitantes daquele bairro, o que poderá por em causa o seu suposto papel inferior na sociedade americana. Elemento que um jornalista pretende explorar, mas acaba recrutado como escritor-fantasma para Queenie, produzindo os textos inflamatórios que serão publicados no jornal.
Tal como os anteriores volumes, a história de Harlem mostra-nos o lado menos romântico da emigração para os Estados Unidos da América. Movidos pelo sonhos das possibilidades, deparam-se com uma sociedade que não acolhe os novos habitantes que são remetidos para duas possibilidades: uma vida de trabalho duro e pobreza, ou uma actividade à margem da lei que permite uma situação económica mais interessante mas também, claro, a perseguição da polícia.



Dos três volumes, este foi aquele em que senti uma maior caracterização da personagem principal. Talvez por ser efectivamente uma personagem histórica, existem detalhes curiosos, e foco nos que a rodeiam, Existe, também, exploração de outras personagens, mostrando-se uma perspectiva mais próxima do repórter que pretende fazer o artigo – ainda que este não seja a justificação do romance, é uma figura também bastante desenvolvida.
Visualmente, este volume recorda os anteriores, com um padrão de cores reduzido que ajuda na caracterização da época em que decorre – um ambiente noir, onde se apresenta a realidade dos clubes e dos bairros pobres. A oscilação, usualmente entre duas cores, permite o destaque de alguns elementos visuais.
A história é, como indiquei anteriormente, um pouco mais próxima das personagens, existindo uma elevada expressividade dos rostos e das posturas. Ainda assim, existem várias páginas em que se representam os cenários e se mostra a cidade. Os desenhos são detalhados, ainda que, por vezes, ligeiramente estilizados.



Claro que esta é, também, uma história trágica. Baseada na mulher que existiu e que tinha de ser esmagada, a narrativa mostra como uma mulher negra de sucesso e orgulhosa quebra os supostos limites culturais e sociais. E é previsível que tal quebra, tal postura desafiante não pode sobreviver incólume.
Depois de ter adorado os anteriores volumes de Mikael, Giant e Bookblack, considero que este Harlem se sobrepõe a ambos. O primeiro conseguiu surpreender pela reviravolta narrativa no final, o segundo é mais pesado em apresentar o caminho criminoso de alguém que cresceu desamparado – mas este terceiro apresenta uma maior dimensão narrativa, ao se centrar na figura história, mas conseguindo também apresentar episódios mais próximos de algumas personagens.
