Tive oportunidade de ver o autor numa sessão numa das convenções de ficção científica e fantasia. Tenho a dizer que o humor negro que demonstra nos livros está presente, também, nas intervenções que vai fazendo, e que não é por acaso que o autor é uma das referências do Grimdark, termo que classifica uma espécie de fantasia com moralidade ambígua, onde a realidade construída é negra e nos apresenta déspotas que exercem o pouco poder que têm de forma pouco construtiva.
Ao longo dos anos peguei em dois livros do autor, The Blade Itself e Best Served Cold. Nitidamente más escolhas, não por conta do conteúdo, mas porque na altura não peguei as continuações e fiquei-me portanto pelo início das respectivas trilogias. Alguns livros do autor foram lançados em Portugal, primeiro na colecção 1001 Mundos lançada pela Gailivro, e mais recentemente pela Kathartika (Um pouco de ódio, O Problema da Paz e o Poder das Multidões).
The Devils é o lançamento mais recente de Joe Abercrombie, tendo sido recebido com bastante Hype. Várias editoras aproveitaram para lançar edições de luxo, ilustradas em capa dura, como esta da The Broken Binding. Trata-se do primeiro de uma nova série que nos leva a uma espécie de Idade Média numa Europa alternativa. E se a Idade Média era pouco esperançosa para a maioria dos seres humanos, Joe Abercrombie consegue criar algo ainda mais negro, juntando várias criaturas mágicas – e hereges.
Nesta realidade existem elfos, necromantes, feiticeiros, vampiros e lobisomens. Todos eles considerados impuros mas os elfos, especificamente, constituem uma civilização à parte, que rotineiramente guerreia com os humanos. Todas estas entidades negras são consideradas uma espécie de diabos, rejeitadas pela Santa Igreja. Pelo menos em público. Na realidade, a Santa Igreja possui um conjunto de entidades aprisionadas, um grupo de personalidades duvidosas que, sob promessa ao Papa (um género de ligação mágica que não conseguem quebrar e que os leva a obedecer à missão) têm de fazer o que lhes é ordenado.



É nesta combinação que um monge ambicioso pede audiência com o Papa – mas o lugar que lhe oferecem é bastante mais perigoso e estranho do que aquele que pretendia. Responsável pelo estranho grupo, vai ser incumbido de levar a herdeira de um dos tronos mais importantes da Europa à sua capital. Mas esta herdeira não é, também ela, vulgar. Criada nas ruas e desenvolvendo as manhas de ladra para sobreviver, compõe o conjunto de heresias e comportamentos pouco dignos.
Como seria de esperar, o grupo é pouco disciplinado e pouco honrado, mas eficaz nas batalhas caóticas que vai enfrentar, progredindo pela Europa a passa lento. O grupo há-de enfrentar e gerar as mais caricatas e diversas situações, demonstrando pouca moralidade e pouca religiosidade. Cada personagem possui a sua própria estranheza, o que resulta em diversas interacções mirabolantes, onde se destacam mortos que andam, lobisomens no cio e guerreiros que nunca morrem.
Neste enquadramento, a violência surge a cada página, tomando novos e originais contornos, onde são usadas as capacidades únicas de cada personagem. A elfo consegue manter-se invisível. A lobisomem perde a cabeça e chacina tudo o que encontra. O necromante cria massas indiscriminadas de pedaços de corpos. Durante tudo isto, a ladra aprende algumas maneiras e uma postura que a poderá tornar convincente no novo papel – isto tudo enquanto enfrenta os restantes pretendentes ao trono, familiares também eles peculiares.
A narrativa é, conforme esperado, negra e divertida. Avança entre diálogos e descrições de episódios de acção, sendo que os diálogos estão carregados de tiradas irónicas e sarcásticas – por vezes demasiado. As piadas sucedem-se rapidamente demonstrando o espírito peculiar de cada personagem, mas por vezes a intensidade é tanta que o diálogo pouco acrescenta, a não ser este aspecto cómico, fazendo com que a densidade seja por vezes excessiva.
A par com estas tiradas (ou dentro) encontramos frases sobre a natureza humana, normalmente caracterizando-a como pouco confiável, interesseira, cheia de problemas e, até incoerente. Esta perspectiva negra faz parte do mundo, contamina as personagens e expressa-se nos acontecimentos e nas decisões das personagens, que esperam sempre o pior de todos. E mesmo assim, há quem se sinta atraiçoado, até porque no meio desta algazarra de batalhas e carácteres pouco confiáveis, conseguem-se estabelecer fortes laços, principalmente entre personagens das quais se esperariam menos compromissos.
Enquanto livro, The Devils pode ser lido isoladamente, tendo um fim próprio. Ainda que exista um final que levanta o véu para algo mais, o conflito apresentado neste primeiro volume é resolvido e poderia ser fechado de forma bastante satisfatória. Deverei, ainda assim, ler os restantes – vamos lá ver quanto tempo demoram a sair.
