
Eis a primeira novela gráfica da Editora Livros Zigurate, uma editora de não ficção que publica sobretudo ensaios sobre história recente e temas contemporâneos. O título é curioso, pelo que o projecto me despertou algum interesse. As expectativas foram cumpridas e ultrapassadas, apresentando-se uma história real e pesada, onde não falta a percepção dos episódios peculiares pela personagem, que os expõe, por vezes, com um julgamento subtil.
A história começa por ser contada na perspectiva do artista e como sobreviveu aos tempos do COVID, para passar rapidamente à perspectiva do médico que pretende contar a realidade que viveu durante a pandemia. Este médico seria um português residente no Brasil, com pouca experiência, mas que se voluntaria para as urgências de um hospital na Amazónia que rapidamente ficam apinhado com infectados.



Entre a falta de recursos e um crescente número de pacientes (e mortos), o cansaço acumula-se. Acompanhamos o médico nos seus primeiros casos, mais sensível e inexperiente, até inseguro, sensibilizado por cada paciente. Percebemos que com a continuação endurece, não porque deixa de se preocupar, mas porque existe sempre alguém, ainda vivo, que precisa de assistência. O que inicialmente é uma perda devastadora, transforma-se quase numa rotina, não menos dolorosa, mas ultrapassada pela necessidade do próximo paciente. O autor foca-se não só no hospital, mas nos familiares que aguardam, no exterior, por notícias.
O relato é pesado. Não só porque se trata de uma zona carenciada e, por isso, de meios escassos, onde as mortes se acumulam rapidamente, mas porque nitidamente é uma zona que não tem importância política e é, por isso negligenciada. A somar à falta de meios, impõe-se a burocracia e a hipocrisia, com o médico a ser confrontado com ordens que o retiram da acção voluntária e necessária.



Assiste-se ao colapso do sistema. Não só pelo número de pacientes mas pela falta de foco político e pela pouca importância dada àquelas populações. Prioritizam-se outras questões, secundárias para quem enfrenta a morte, mas principais para quem está longe desta realidade. É como se, no mesmo país, coexistissem duas realidades, estanques e mutuamente incompreendidas.
A história foca, também, o impacto psicológico e tece uma crítica à comunidade médica. No pico da pandemia há uma escassez de camas e a morte atinge um tal nível de banalidade que o médico, cansado, acaba a dormir literalmente entre cadáveres. Sente-se o desespero por meios e a exaustão. Mas esta não é a realidade vivida por todos os médicos. Apesar do juramento de Hipócrates há nitidamente quem esteja na profissão para se abastecer financeiramente.



Como referido anteriormente, Dormindo entre cadáveres é o relato pessoal (e visualmente bastante realista) de um médico que optou voluntariar-se para uma região necessitada, apesar da sua escassa experiência, a fim de fazer a diferença num hospital de capacidade lotada. É, consequentemente, uma história pesada, de perspectiva fechada, onde é impossível não sentir o desespero da situação e, até, alguma revolta pelas circunstâncias políticas.