Deusa da magia, ninfa, bruxa, encantadora ou mágica, Circe é uma figura da mitologia grega dúbia e diferente dos outros deuses ou divindades. Filha de Hélio e Perseis (uma ninfa) é conhecida pelo seu conhecimento de poções e ervas, sendo destas que deriva o seu poder de influenciar e transformar os seus inimigos. Neste livro a autora centra-se em Circe, contando a sua vida imortal desde os primeiros anos como divindade menor e esquecível, até ao exílio e transformação final.
De voz humana, aparência incomum (e até feia para os restantes deuses) Circe cresce esquecida entre uma série de divindades poderosas, numa corte carregada de jogos de poderes e influências, na qual não desempenha qualquer papel. A sua presença é tolerada, mas não tem amigos nem protectores, vivendo nas sombras como uma personagem simples.
A sua existência na corte será influenciada por Prometeu, a divindade que trouxe o fogo aos humanos, e que é trazido à corte de Hélio antes da concretização da sentença que o irá prender a uma rocha por toda a eternidade (enquanto uma águia, todos os dias, lhe come o fígado que se regenera). Circe interessa-se por esta personagem e assim ganha a curiosidade pelos humanos que a há-de marcar.
Entre a transformação de um humano em divindade, assistir ao parto de Minotauro, conhecer Dédalo (e Ícaro), e receber Ulisses na ilha em que se encontra exilada (por usar os seus poderes mágicos que os restantes deuses que não compreendem) Circe é uma personagem peculiar que se adapta à solidão e que possui todas as características de uma bruxa típica, vivendo alguns dos mais marcantes episódios mitológicos – e assim é usada pela autora que acaba por retratar a divindade, bem como as motivações de algumas das personagens mais marcantes da mitologia grega.
Distinguido com o prémio de Fantasia do Goodreads, Circe é um livro que me despertou opiniões dúbias – se por um lado possui bons momentos de caracterização, mostrando o lado perverso das dividantes (que reflectem os humanos) e das figuras mortais lendárias, por outro alonga-se demasiado nalgumas passagens mais pausadas (ainda que reconheça que algumas sejam necessárias para descrever momentos marcantes e decisivos de Circe).
Menosprezada pelas restantes divindades pela sua falta de poderes e pela voz humana, Circe consegue a proeza de atingir o seu auge enquanto isolada numa ilha, onde usa tudo o que a rodeia para tecer fortes bruxarias que fazem frente aos poderes tradicionais dos deuses. Circe conhece bastante bem o funcionamento de uma divindade típica e usa isso para defender o seu filho ou os restantes humanos pelos quais se interessa, constituindo uma divindade altruísta de psicologia complexa.
Para quem gosta de histórias mitológicas Circe constitui uma abordagem interessante, desconstruindo os deuses – a sua imortalidade e poderes são os elementos que os diferenciam dos seres humanos, mas, também, o que os torna estáticos, previsíveis e receosos pela mudança ou por aquilo que não compreendem. Circe mostra uma divindade diferente, uma divindade menor que, desconsiderando a imortalidade, é comparável a um humano, não revelando os vícios usuais dos mais poderosos.
Circe é, portanto uma boa leitura – as personagens são complexas e desenvolvem-se de acordo com os eventos que marcam a sua existência, os eventos mitológicos apresentados possuem abordagens diferentes do usual e a autora consegue envolver o leitor e fazer sentir empatia pelas personagens que constrói. Para mim, terá como defeito o arranque mais leito, debruçando-se demasiado na existência de Circe na corte de Hélio.