
Eis o final perfeito para a série perfeita! Em Armazém Central consegue-se pegar num enquadramento que poderia ter tudo para ser aborrecido e pesado, e transformá-lo numa extraordinária história de banda desenhada! O truque? Serão vários, claro, mas a boa disposição e a capacidade de criar empatia para com as personagens são dois grandes factores que me levam a considerar esta série como sendo uma das melhores coisas que já li em banda desenhada.



A história
Numa vila do interior frio canadiano, o quotidiano altera-se com a morte de um só homem. Isto porque a sua viúva, Marie, que não é originária dessa vila, resolve, numa primeira fase tentar assumir o Armazém, mas, numa segunda, farta-se e dirige-se à cidade, pronta para aproveitar alguns dos anos de juventude que ainda tem. Quando retorna traz outros hábitos e modas que irão contaminar os restantes habitantes, e levar a algumas mudanças de mentalidade.
A par com Marie, existem dois homens que irão, também eles, trazer mudanças. Um deles é o novo padre, com modos menos rígidos e mais compreensivos. Outro é um viajante que aqui se instala para criar um restaurante de cozinha francesa e dar a conhecer novos sabores. A mentalidade destas três pessoas contamina os restantes ao longo de toda a história.
Neste volume final (para quem não leu a série, prepara-se para spoilers) acompanhamos a gravidez de Marie e a conversão final da vila para um estado assumidamente mais relaxado, onde a vida, apesar de dura serve para ser aproveitada.



Crítica
Armazém Central é a história perfeita – o retrato de vidas com toda a sua complexidade, entre mortes e nascimentos, desastres e momentos felizes. As personagens têm personalidade, proferindo discursos e estados de espírito muito próprios, por vezes ligeiramente exagerados em prol de uma aura cómica, mas sempre caricatos e autênticos. É esta caracterização, a meu ver, um dos pontos fundamentais que fazem a série tornar-se tão interessante.
Ao longo da história tocam-se tangencialmente em vários assuntos – a homosexualidade escondida, a liberdade e autonomia femininas, a religiosidade enquanto forma de parecer bem em sociedade. Em meios pequenos escondiam-se diferentes preferências sexuais e a mulher ainda detinha um papel muito tradicional, cuidando da casa enquanto os mais se ausentavam para ganhar algum dinheiro. Ao longo desta série, há segredos e revelações, há alterações e mudanças de algumas mentalidades – se não em todas as vertentes, pelo menos nalgumas.
Este volume fecha a série de forma sublime, mostrando e realçando as transformações pelas quais passou a vila. No final, mostra-nos um pouco mais, com fotos de algumas personagens, como num álbum de fotografias. Assim nos despedimos de Notre-Dame-des-Lacs, com um sorriso e muitas saudades da boa disposição que rodeia todo o enredo.
A par com o excepcional enredo, encontramos um desenho, também ele, caricato e ligeiramente cómico, expressivo e envolvente. Esta capacidade de transmitir sentimentos e pensamentos revela-se sobretudo nas páginas onde não existem palavras, mas onde se conseguem percepcionar interacções, olhares e estados de espírito.



Conclusão
Esta é daquelas séries excepcionais que aconselho a todos os leitores de banda desenhada, mesmo aos que achem que este não é o seu estilo. Tudo é fabuloso, desde a narrativa ao desenho, passando claro, pela edição da Arte de Autor em capa dura – uma história para ler e reler !