Nomeado para alguns dos prémios mais reconhecidos da ficção especulativa (Nebula, Hugo, World Fantasy Award, BFA, etc) trata-se do primeiro livro de uma autora que viria a escrever outros com elevada notoriedade (como The Once and Future Witches). O livro encontra-se, também, na lista de livros de fantasia com mais sucesso dos últimos anos no Goodreads. Posto isto, claro que a expectativa era elevada! Nalguns pontos cumpriu… noutros nem por isso.

A história

January é o nome de uma rapariga que cresce em circunstâncias curiosas no início do século XX na América – é que January tem a pele mais cura, fruto de uma união que ela própria desconhece. Da mãe, de pele clara, que nunca chegou a conhecer pouco sabe. Já o pai, encontra-se quase sempre ausente, em missões pelo mundo, onde recolhe objectos raros para o seu benfeitor, o senhor Locke. É com o senhor Locke que January cresce, criada como uma donzela, apesar da rigidez na educação.

Apesar de pouco dócil, January cresce meio apagada, após a implementação de métodos rígidos por Locke. Mas tudo muda quando, mais crescida, recebe a morte do falecimento do pai, revelando uma língua demasiado afiada a que Locke decide responder com uma estadia no manicónio. Felizmente, alguém lhe há-de passar um livro importantíssimo sobre portas. É que January afinal, tem o poder de abrir portas para outros mundos, e é este livro que a recordará de tal feito.

Crítica

Um dos pontos em que este livro se destaca é a premissa fantástica – a existência de vários mundos não é novidade (tendo sido usada em várias narrativas, inclusivamente nos Mundos Paralelos de Philip Pullman) e a de portas também não. O que distingue este volume são as civilizações que existem nestes mundos, e a forma como se diferenciam do mundo que conhecemos.

No caso de January, é uma rapariga que resulta do cruzamento de duas pessoas de mundos distintos – o pai será oriundo de uma civilização de elevada cultura e muito sol, onde a pele das pessoas é escura. Já a mãe, é do nosso mundo, e será uma viajante que explorou todas as portas que encontrou, enfrentando as mentalidades torpas que foi encontrando.

Esta união irá resultar numa rapariga que tem a pele suficientemente escura para ser alvo de descriminação. Se, ao abrigo do senhor Locke, será sempre protegida das reacções racistas, quando, anos mais tarde, se vê obrigada a aventurar por meios próprios, irá perceber as diferenças de que é alvo. É desta forma que o livro acaba por explorar o racismo da sociedade americana no início do século XX, ainda que este elemento não se torne central na narrativa.

O desenvolvimento é algo juvenil e nem sempre é coeso e objectivo. Inicialmente a história centra-se apenas na jovem em crescimento, apresentando os dramas e a educação rígida do senhor Locke. Percebemos que o relacionamento do senhor Locke com o pai é peculiar e nem sempre de confiança, sobretudo quando o pai envia uma dama de companhia que, na verdade, é alguém capaz de defender January se necessário.

Mais tarde, January descobre um livro que conta a história de duas pessoas e a sua relação com as portas. Neste ponto, a narrativa passa a alternar entre o livro e a perspectiva de January. O desenvolvimento de ambas as histórias nem sempre é muito interessante, falhando por vezes em criar empatia com as personagens – sobretudo as secundárias que criam laços com January.

É, nitidamente, um livro imperfeito, que poderia ter sido mais limado, sobretudo no desenvolvimento de personagens. Ainda assim, é uma história acima da média para primeiro livro, que contém uma construção de mundos interessante, e uma forma curiosa de criar portas para outros mundos. Neste seguimento, deverei ler o outro livro da autora, mas sem grande urgência.

Conclusão

The Ten Thousand Doors of January é uma fantasia engraçada, que se destaca pela construção de vários mundos, entrelaçando-os de tal forma que as civilizações neles existentes se influenciam. A história tocar nalguns temas actuais (sendo o racismo e a discriminação) mas não avança concretamente nesse sentido, nem fecha a porta, deixando alguma nebulosidade. Em termos de personagens, deveria, a meu ver, ter explorado mais as secundárias, concedendo-lhes motivações e dimensões mais fortes.