Eis mais um lançamento fantástico nomeado para o prémio Goodreads pela Desrotina no mercado português. Como outros lançamentos da editora, este apresenta uma capa enigmática que capta a atenção, ainda que, nitidamente, seja destinada a um público mais YA.

A história decorre num Universo semelhante ao nosso, ainda que o nível de tecnologia seja inferior. Existem telefones de fio, comboios e carros. Não existem telemóveis, por exemplo. Não existem países como os conhecemos, mas existem pelo menos duas nações – Argant e Llyr. A acção decorre em Argant, havendo elementos culturais que comuns a Llyr, o que terá provocado uma guerra no passado. Mas apesar de algumas semelhanças com Llyr, Argant é, em si, um país pouco homogéneo, com um Sul mais pobre e supersticioso, e um Norte mais rico e racional.

Nesta realidade, as mulheres estão proibidas de frequentar determinadas faculdades (por serem demasiado frágeis e inconstantes) e é esperado que o façam apenas para procurar marido ou que, em alternativa, fiquem em casa. É neste contexto que somos apresentados a Effie, a única mulher a frequentar o curso de arquitectura que gostaria de ter acesso ao curso de literatura, mas tal é-lhe impossível.

O projecto perfeito vem sob a forma de concurso, quando é solicitada a submissão de projectos para uma casa que seja adequada ao legado de Emrys Myrddin, o escritor favorito de Effie, recentemente falecido. Uma das obras de Emrys Myrddin terá especial interesse nacional por ter pegado nas mitologias nacionais, impregnadas por uma magia que é ridicularizada pelos nortenhos, uma espécie de romance com o temido Rei das Fadas.

Effie foi, claro, uma das seleccionadas para continuar o projecto, tendo de se deslocar à região Sul, visitando a casa do falecido autor, e conhecendo o filho deste. Effie permanecerá na casa de hóspedes, um casebre no exterior, enquanto outro estudante, Preston, também desenvolvendo um projecto, mas de investigação literária, permanecerá como convidado no interior da mansão.

A narrativa desenvolve-se com várias referências mitológicas, mas mantendo-se no limbo entre o real e o sonho, e fazendo com que seja possível que as manifestações mágicas não passem de visões de uma só personagem. Effie é obcecada pelas histórias do Rei das Fadas e foram-lhe receitados medicamentos para os vislumbres fantásticos.

Noutra vertente, Effie encontra-se permanentemente rodeada de homens mais velhos que a tentam usar para os seus próprios propósitos. Sendo a única estudante feminina no curso de arquitectura, o seu orientador abusa da proximidade, tal como agora o filho de Emrys Myrddin tenta encurralá-la, cada vez mais insistentemente. Fora deste padrão encontra-se Preston, um jovem muito focado na lógica e no real, que, apesar de gostar de Effie, doseia as suas aproximações.

A sociedade que nos é apresentada em Um Passado Submerso é bastante misógina e limitadora das liberdades das mulheres. Continuamente referidas como seres de intelecto inferior, sobretudo por homens mais velhos, são sumariamente designadas como santas ou prostitutas – uma perspectiva que também é bastante conhecida no nosso mundo e que é explorada aqui nas várias interacções.

A história explora esta vertente, focando-se não só no mundo académico como no mundo literário, com o aproveitamento do trabalho feminino recusando-lhe a autoria e silenciando-o. Numa esfera mais familiar, as vontades femininas são ignoradas e as suas vidas são geridas pelos homens que as vêm como uma extensão das suas propriedades ou como prémios a obter.

Neste contexto, Effie destaca-se por não parecer uma personagem forte e destemida. Sobrevivente de vários traumas sucessivos, e com a confiança minada, toma decisões, mas questiona-se permanentemente se terá sido a correcta, tendo momentos de desespero e ansiedade. Percebemos porquê quando contacta a mãe e ela a trata de forma indiferente e abusiva, sendo esta relação mais detalhada a meio do livro.

Para além da misoginia e do trauma familiar, a história aborda, tangencialmente, o preconceito. Preston é de outra nação, e Effie desenvolve, inicialmente, hostilidade para com o jovem devido às suas origens, colocando-lhe características que não são propriamente as suas, individuais. É só depois que o relacionamento entre os dois se há-de desenvolver, ainda que este desenvolvimento seja mais óbvio do que natural, sem que existam momentos necessários para criar o interesse e o envolvimento. Pelo menos na parte inicial.

A história destaca-se pela abordagem à fantasia, deixando espaço para que se trate apenas de visões ou ilusões, materializações da superstição mágica que existe naquela nação. Ainda assim, poderia ser um pouco mais subtil nalguns detalhes, mas acaba por apresentar mais descrições do que necessitaria. O facto de se centrar numa personagem instável e psicologicamente fragilizada contribui para o interesse na narrativa e alguns pontos que, no início parecem demasiada coincidência até farão sentido, o que é positivo. Em termos de envolvência, a história vai cativar mais a partir de metade, quando, finalmente, temos uma ideia dos mistérios associados ao romance de Emrys Myrddin.