Este foi o ano em que li mais banda desenhada, com 146 volumes lidos, aproveitando para ler em francês, para além do usual inglês e português. Este maior foco deve-se sobretudo à expansão das publicações no mercado nacional, em que destaco os lançamentos da G Floy e da Levoir, bem como à disponibilização, através do NetGalley, de vários volumes da Image que me despertaram para algumas novas séries.
Banda desenhada Portuguesa
A melhor leitura – Vampiros – Filipe Melo e Juan Cavia – Depois de Dog Mendonça e Pizzaboy, Filipe Melo e Juan Cavia abraçaram um desafio de temática mais séria, retratando uma das mais duras realidades portuguesas, a Guerra Colonial, principalmente na Guiné. Em terreno de difícil controlo como são as florestas, a guerra é, sobretudo, psicológica, por conta das emboscadas permanentes que incutem o terror pela expectativa sempre presente de algo repentino e definitivo. Captando o ambiente incerto, o nervosismo que se transformar em paranoia, o desenvolvimento de uma aparente insensibilidade às desgraçadas, Vampiros não apresenta heróis, mas homens que ficarão para sempre marcados pela Guerra.
Menções honrosas – Para quem não conheceu o conteúdo da revista, como eu, Revisão revelou-se uma boa surpresa, diversa em conteúdos e estilos, mas com muitas histórias inteligentes de excelente visual. Contendo, também, algum conteúdo com carácter experimental, é uma leitura aconselhável a quem gosta de banda desenhada e desconhece o que foi produzido neste período. A Demanda do G (Geral & Derradé) foi uma revelação bem humorada, carregada de espírito cómico onde se destaca a estrutura peculiar, uma demanda mirabolante e divertida, acompanhada por tiras em voz-off que tecem comentários a propósito da acção principal. Por sua vez, Milagreiro com narrativa de André Oliveira centra-se numa entidade secreta composta por agentes sem vida própria que têm por missão criar pequenos milagres para perpetuar a fé. Ao longo da história o desenho de vários artistas vai sendo intercalado, dando um carácter muito próprio ao conjunto. Ainda, Apocryphus revela uma excelente qualidade gráfica cruzando o trabalho de vários autores sob o tema fantástico numa edição de aspecto cuidado;
Banda desenhada de horror
A melhor leitura – Harrow county de Cullen Bunn e Tyler Crook (volum 1)- Desde que comecei a ver esta série em todos os topos de ficção de horror que senti curiosidade para lhe pegar. O primeiro volume foi publicado recentemente por cá e esteve à altura das expectativas. Utilizando o poder da magia antiga, das bruxas rurais que se envolvem com criaturas sobrenaturais, Harrow county mostra como nem sempre os monstros são os que aparentam;
Menções honrosas – Começando pelo fantástico Wytches (de Snyder, Jock, Hollingsworth e Robins) com criaturas sobrenaturais e milenares como bruxas, num cenário rural de bosques sombrios e passando pela serie lovecraftiana Locke & Key de Joe Hill Gabriel Rodriguez, onde uma série de chaves moldadas com demónios não corporizados possuem faculdades imagináveis mas só podem ser utilizadas por um preço demasiado elevado, o destaque vai também para a série Fatale de Ed Brubaker e Sean Philips, outra série de influência lovecraftiana que segue uma femme fatale com a capacidade de se fazer obedecer por todos os homens, capacidade que distribui a desgraçada por onde passa, com violência desmedida e irracional.
Banda desenhada fantástica
A melhor leitura – The Autumnlands de Kurt Busiek e Benjamin Dewey – Com imagens de bom detalhe que originam páginas de aspecto arrasador, a história decorre numa realidade onde várias espécies de animais coexistem numa única cidade, apresentando uma civilização de contornos medievais centrada nas artes mágicas. A magia está, no entanto, a desaparecer, ameaçando a vida das populações urbanas, que assim ficariam desprotegidas à rapina pelas restantes espécies. Num acto de desespero convocam, por artes mágicas, um antigo e mítico herói. O que surge é um homem, quase nú, incapaz de realizar magia, mas capaz de utilizar meios científicos para desenvolver formas de luta.
Menções honrosas – I Hate Fairyland de Skottie Young é um dos livros mais hilariantes que li este ano. Quem nunca leu uma história que tem como principal personagem uma criança que “cai ” num reino mágico onde tem uma importante missão a cumprir? Neste caso Gertrude vai parar ao reino das fadas, fofinho, amoroso e carregado de músicas animadas e doces. O que parece ser o sonho de qualquer criança transforma-se, 27 anos sem conseguir resolver charadas, num pesadelo e Gertrude transforma-se numa psicopata implacável que mata e come qualquer um que aparecer no seu caminho. Tudo num ambiente fofinho, queriducho e amoroso. Sharaz-De de Toppi fascinou-me pelo visual, diferente do usual, com cada página a constituir uma obra de arte, carregado de texturas diferentes para melhor diferenciar o preto e branco das páginas. De destacar, também, o ambiente e a lógica pouco ocidentais que contribuem para transformar estas histórias numa boa leitura.
Banda desenhada de ficção científica
A melhor leitura – Trees de Warren Ellis e Jason Howard – Os alienígenas chegaram à Terra, mas não iniciaram nenhuma tentativa de interação. As enormes estruturas cilíndricas esmagaram tudo o que se encontrava no caminho da aterragem provocando diversas catástrofes, algumas em cidades com grande densidade populacional. O terror dos primeiros momentos dá lugar ao nervosismo da incerteza, e as populações que permanecem perto das estruturas apresentam sintomas de elevado stress psicológico. Graficamente brutal, alternando cores conforme o intercalar de locais, Trees consegue combinar uma boa premissa para qualquer história de ficção científica com a excelente qualidade do desenho;
Menções honrosas – Fragmentos da enciclopédia délfica de Miguelanxo Prado foi o meu primeiro contacto com o trabalho do autor e despertou-me interesse pelas semelhanças para com A Guerra da Elevação da David Brin, com a espécie humana a desenvolver a inteligência de outras espécies da terra, mas continuando a tratá-las como escravos, seres de segunda categoria. Miguelanxo Prado utiliza este contexto para estabelecer um paralelismo com a espécie humana, em episódios de constante crítica social. Descender de Jeff Lemire e Dustin Nguyen recorda-me um cruzamento de A.I. com Battlestar Galactica retratando um robot, Jim, com aparência de criança que é recebido numa família como um verdadeiro filho. Aquando da revolta dos robots, Jim encontrava-se desligado e não participou. Anos mais tarde, quando acorda, sente falta da sua família e tenta procurá-los, apesar de perseguido por diversas entidades. Parque Chas de Eduardo Barreiro e Eduardo Risso decorre num bairro residencial que tem assistido, ao longo dos anos, a diversos fenómenos inexplicáveis. O autor projectado como personagem na própria história, assiste a alguns e começa a investigar por conta própria o que se poderá estar a passar aqui. Quando se apaixona por uma femme fatale sabemos que se envolverá mais do que pretendia numa aventura mirabolante por várias realidades onde se cruza com várias personagens ficcionais.
Banda desenhada Histórica
A melhor leitura – Foi assim a guerra das trincheiras de Tarti – Esqueçam a visão romântica de jovens heróis, guerreiros, cheios de vontade de combater e de perder a vida pela nação. A vida nas trincheiras é suja e pestilenta, os soldados inimigos são apenas um dos perigos e os jovens levados para uma guerra em que não se revêm acabam por se dessensibilizar para os horrores a que assistem a cada hora de permanência na linha da frente. A par com este retrato pungente, Tarti compõem tiradas críticas bem colocadas, sobre a situação dos soldados, sobre as populações que acabam por perecer com a guerra e sobre os colonizados que aqui acabam sem saber muito bem como nem porquê.
Menções honrosas – Democracia de Alecos Papadatos, Abraham Kawa e Annie Di Donna decorre na Antiga Grécia e visa mostrar como se desenvolveu o modelo que conhecemos como Democracia. Baseado em factos históricos e preenchido com suposições é uma abordagem interessante que se preocupa em criar e desenvolver personagens para fazer desenrolar os acontecimentos. Por sua vez, O Comboio dos órfãos de Philippe Charlot, Xavier Fourquemin e Scarlett Smulkowski é a história verídica das crianças que viviam nas ruas das cidades. Órfãos, ou não, a quantidade de crianças atingiu tal ordem que se criaram instituições para distribuir por famílias de todos os Estados Unidos da América, sem qualquer registo, e separando irmãos. Décadas depois, alguns procuram saber algo mais sobre as suas origens, investigação difícil nestas circunstâncias.
Outras bandas desenhadas
A melhor leitura – Ardalén de Miguelanxo Prado – Apesar de ter gostado imenso de tudo o que li de Miguelanxo Prado (Presas fáceis é uma mordaz crítica à forma como foram geridas as crises bancárias com pagamentos milionários para os responsáveis e desaparecimento das poupanças de milhares de pessoas poupadas da classe média, Crónicas Incongruentes um conjunto de episódios satíricos da sociedade onde são exageradas situações comuns criando-se um desassossego cómico mas desconcertante no leitor), Ardalén foi o álbum de que gostei mais. Apresentando uma história contínua, explora a memória e os relacionamentos, as saudades e as experiências de vida pelos encontros de uma jovem com um velhote que se desloca a uma vila no interior em busca de alguma memória do avô.
Excelentes leituras.
Tenho dois desses livros na calha… fiquei com ainda mais vontade 🙂
Quais, quais? 🙂 (quais na calha?)
Os Vampiros e o Ardalén, ambos prenda de Natal. Estou ansiosa 🙂