Há cerca de 10 anos li um livro brutal – A Stranger in Olondria. Vencedor do British Fantasy Award e do World Fantasy Award, é uma fantasia pouco usual que recorre a cenários díspares para nos confrontar e fazer confrontar culturas bastante diferentes. De forma bastante diferente, este The Practice, The Horizon and The Chain, leva também a confrontos de perspectivas em locais e épocas distantes.

Numa cela sombria, um rapaz vai crescendo acorrentado, com mínimas interacções e sem laços familiares. No local, que nos parece uma cave quase sem luz, vivem centenas de pessoas em condições sub-humanas. A sua realidade é limitada e um dos pontos altos envolverá as palavras do profeta que fala de um conceito desconhecido: um rio, um mar, um horizonte.

Até ao dia em que é escolhido para uma experiência académica, em que se reabilita uma prática quase esquecida – trazer alguns seres humanos para um nível acima do solo. Adoptado por uma professora cujo pai também veio das caves, o rapaz revela atrasos intelectuais e físicos graves, que vão ser gradualmente diminuídos com o novo quotidiano, assistindo a aulas. Ainda assim, o rapaz não se adapta totalmente, mantendo alguns hábitos, e possuindo algumas interacções que são nitidamente díspares.

O ponto de ruptura com este novo quotidiano vem sob a forma de um pedido – o de ver o profeta do sub-solo. Para tal, terão de pedir algumas autorizações e a professora académica irá com ele, descobrindo toda uma lógica e mitologia que desconhecia até então – uma mitologia ligada a tempos idos que falam de união e de um mundo que desconhecem.

Um dos elementos mais interessantes deste livro é a forma como a autora desenvolve a perspectiva das personagens. Nos primeiros episódios com o rapaz percepcionamos uma realidade fechada, claustrofóbica, mentalmente limitada e básica. Mas, até aqui os seres humanos encontram algo de excepcional, um foco de esperança para algo diferente e indescritível.

Mas se os acorrentados das caves nos parecem ter uma vivência limitada, já os do nível acima se revelam não muito diferentes. Cada um deles possui uma pulseira, um equipamento com funcionalidades variadas, mas que pode, também, fazer com que sejam controlados – uma perspectiva aterradora em que o controlado se sente literalmente como uma marioneta.

As duas realidades contrastam. Uma aparentemente mais civilizado, mas igualmente castradora e, até limitada nas suas crenças e visão da realidade, e uma aparentemente mais primitiva, mas mais rica em mitologia, guardando histórias de um tempo já esquecido. É nesta combinação de humanidade e desumanidade que se exploram as ligações entre as duas realidades, e entre todas as pessoas a bordo daquela nave.

Mas a história não se fica por aí. De forma subtil a narrativa explora igualdade de oportunidades, relações de poder no local de trabalho e diferenças de perspectiva. Os que habitam as caves são vistos como animais e sub-humanos, ainda que, trazidos para outra realidade, se possam desenvolver como os restantes. Por outro lado, o relacionamento entre colegas para a obtenção de bolsas e de projectos académicos é uma questão tangencial e curiosa. Mas no cerne, diria que encontramos a transformação do passado em mitologia e em profecia.

O resultado é uma leitura pequena (que não chega às 150 páginas), mas envolvente pela abordagem e pela escrita, que se destaca pela forma como desenvolve a perspectiva das personagens e como apresenta uma sociedade numa nave.