Eis uma boa narrativa de autoria portuguesa com elementos de ficção científica que oscilam entre o futurismo ligeiro, a distopia, e o apocalíptico, sem faltarem os encontros com alienígenas. O ponto menos positivo estará nos clichés mal aproveitados, nas constantes figuras de estilo e nas descrições das mulheres que são constamente objectificadas. Mas passemos aos detalhes do que é bom ou menos bom em Zalatune.
A história
Zalatune leva-nos a conhecer a realidade distópica de uma ilha mediterrânica – Ínsula. O cenário é ligeiramente futurista, comentando-se alguma tecnologia um pouco mais avançada do que a que temos na actualidade, principalmente a nível de procriação. Nesta ilha todas as decisões do governo são levadas a referendo (com a devida manipulação da opinião pública para se obterem os resultados desejados) e os habitantes progridem para o racismo extremo com o objectivo de eliminarem qualquer um que não tenha o fenótipo típico de Ínsula.
Neste seguimento, o governo planeia criar um muro em torno de toda a Ilha de modo a prevenir a entrada de novos refugiados. Sem grandes detalhes de um panorama mundial, percebemos que o mundo foi afligido por uma pandemia de elevada mortalidade, e que guerras e revoltas noutras zonas levaram a que vários refugiados pobres tenham procurado asilo em Ínsula.
A Ilha tem sido um paraíso em termos económicos, mantendo alguma estabilidade, pelo que não pretendem arriscar o seu conforto para ajudar outros que não fazem parte da unidade nacional Toda a sociedade da Ilha se exalta com as suas características nacionalistas, tocando até na selecção genética para destacar o seu fenótipo.
Vamos acompanhando o ponto de vista de várias personagens – desde uma reputada geóloga, ao presidente, bem como o líder da oposição (de uma antiquíssima família da ilha) a uma refugiada que sobrevive através da prostituição. Cada personagem tem uma perspectiva única e diferente da mesma sociedade e dos mesmos acontecimentos.
Mas não é apenas na forma de governo (distopia) que o livro pode ser considerado ficção científica. O líder da oposição terá sido levado por alienígenas, enquanto criança, a conhecer um outro mundo – este facto terá maior importância na segunda metade do livro.
A distopia e o paralelismo com a actualidade
Nesta sociedade as pessoas são levadas a pensar que têm o controlo através de referendos. Claro que estes referendos não são escolhidos ao acaso e visam reflectir as manipulações que se vão exercendo sobre os cidadãos. O nacionalismo é instigado ao seu auge e as populações “escolhem” o isolamento, comprando a visão do outro enquanto culpado máximo de todos os problemas, o bode expiatório perfeito que permite salvar os políticos de responsabilidades.
Os referendos são, assim, usados para legitimar opiniões polémicas, dando, claro, poder aos que os sugerem, principalmente quando os resultados de aprovação de uma determinada medida excedem os 90%. E o que é alvo de referendo? Decisões como restringir a privacidade de todos os cidadãos ou a construção de um muro.
A sociedade descrita é corrupta ao estilo do que podemos encontrar nos países latinos. A política é controlada por algumas famílias que se vão mantendo no sistema ao longo de várias gerações. Os cargos vão sendo atribuídos por cunhas e algumas indústrias funcionam à margem da lei, oleando as contas bancárias de algumas pessoas bem posicionadas.
Ainda assim, a Ínsula será o único lugar do mundo com pessoas idosas, dado que uma doença terá dizimado grande parte da população. Este elemento é dos que distingue Ínsula como local ideal para que vários estrangeiros aí se tentem refugiar, apesar da hostilidade que irão encontrar.

Opinião
Conceptualmente Zaratune apresenta uma premissa interessante. A distopia leva ao extremo a onda de populismo que varre a Europa, colocando-o numa sociedade imaginária (mas plausível até ao mirabolante encontro alienígena). A alternância entre personagens permite fornecer ao leitor uma visão mais alargada dos acontecimentos e percepcionar vários lados de uma mesma questão. O autor controla bem a narrativa do livro, ainda que ache que o final tenha sido uma saída fácil para o enredo que montou.
A história consegue apresentar diferentes personagens e caracterizá-las de forma diferente consoante as suas motivações. Existem alguns pontos (raros) que nem sempre são coerentes com a personagem, mas ultrapassam-se bem. A narrativa é ritmada, alternando entre diálogos, sexo e confrontos políticos.
O que é menos positiva é a forma como as personagens são descritas (eis alguns exemplos, tirados ao calhas, abrindo aleatoriamente o livro):
“escondendo-se bem à vista debaixo de camisas justas cobrindo bíceps do tamanho de meloas e peitorais duros como pedras”
“uma cinqentona que gostava de se deixar fotografar ao entardecer, enfiada em biquínis de pouco pano, estendida nos areais dourados, em plena ostentação de mamas, coxas e nádegas”
“Marguerita era um sonho de mulher feita de pernas de cetim e mamas a atirar para um grande não excessivo”
Esta forma de descrever personagens (e circunstâncias sexuais) é utilizada quer para personagens femininas quer para personagens masculinas, mas torna maiores proporções para as personagens femininas continuando com a descrição das suas experiências e preferências sexuais. Talvez como forma de demonstrar que são emancipadas e livres, mas que na prática reflectem fantasias tipicamente masculinas numa perspectiva masculina da sua sexualidade.
Outro dos pontos negativos na narrativa são as constantes metáforas, usadas a torto e a direito e que nem sempre funcionam. A escrita leva constantemente as características ao extremo, ao exagero – uma estratégia que mantém o leitor em alerta contínuo mas que se pode tornar cansativa.
Se se conseguir ultrapassar (ou ignorar) estes dois elementos, Zalatune é uma história ritmada, carregada de acção e reviravoltas mirabolantes, que alterna entre diferentes conflitos pessoais e tramas políticas, com uma descrição dura e directa para episódios violentos e para episódios sexuais.
Conclusão
Gostei da premissa da sociedade futura, onde os referendos são usados como forma de controlo, e a tecnologia permite uma nova flexibilidade nas decisões sociais. A representação de um país inexistente possibilita o desenvolvimento de várias circunstâncias ficcionais em seu torno, e limpar a interpretação do conhecimento que temos de países reais. A referência a pandemias é bastante actual e é usada para justificar alguns elementos do mundo imaginado.
Mas não gostei do final, de algumas passagens pesadas em metáforas e absurdos, nem da forma como se abordam as mulheres. O final desenvolve-se com uma saída fácil, não se enfrentando as consequências narrativas do que foi exposto ao longo do livro. Os outros dois pontos já os apresentei em cima.
Posto isto, é uma leitura polémica. Provavelmente não vou querer ler outro livro do autor, ainda que considere que é uma leitura ritmada que induz a uma rápida leitura. O livro foi publicado em Portugal pela Manuscrito.