Já tinha falado aqui dos dois primeiros volumes desta série de Loisel. Não é uma série nova no mercado português, mas encontrava-se esgotada para novos leitores. Tendo sido daquelas que já me tinha despertado interesse antes, gostei de a poder ler finalmente. E, ao contrário de vários outros comentários que vi por aí, achei o final adequado e coerente com a restante história (sem dar grandes detalhes, claro).

Nos dois primeiros volumes somos levados a conhecer Peter e a sua primeira viagem à Terra do Nunca. Já os dois seguintes revelam-nos a transformação de Peter em Peter Pan, e os dois seguintes, a forma como captou novas crianças para as suas aventuras, ao mesmo tempo que se confronta com o mundo real, carregado de traumas e desilusões.

Crítica

Enquanto que no mundo real esperava-o a corrupção da idade adulta, com o envolvimento com mulheres de natureza duvidosa (das quais se afasta, por procurar a figura feminina bela e pura que possa ser a mãe perfeita), na Terra do Nunca, as figuras femininas parecem, também querer envolver-se com Peter (ainda que sem a maturidade das prostitutas da noite de Londres).

Tal como Peter, os rapazes órfãos procuram uma figura materna que possa dar carinho e atenção, bem como cuidados. Esta figura materna materializa-se toscamente numa jovem rapariga, mas toma contornos de veneração perante uma foto de uma mulher composta e bem parecida (de rosto quase angelical). Se Peter tem uma mãe que não corresponde ao ideal materno, os restantes rapazes não têm mãe e anseiam por alguma atenção maternal.

Este é um vector muito importante nas personalidades de todos estes rapazes, destacando-se episódios ao longo de toda a série que remetem para este tema. Parece ser, também, um dos grandes motivos para Peter não querer crescer e tornar-se adulto, por forma a olhar para as mulheres de uma forma mais madura. A Terra do Nunca permite o afastamento da corrupção madura, afastando-o da realidade sombria de uma Londres populada por prostitutas e assassinos.

Para além de refúgio da realidade, A Terra do Nunca permite o desenvolvimento de uma personalidade corajosa, onde Peter é o herói principal, enfrentando perigos e vilões que possuem a sua própria dose de ridículo e de corrupção (como qualquer figura maliciosa que se prese, envolta em estupidez e mirabolantes planos falhados).

Este mundo de fantasia não é, no entanto, perfeito ou isento de perdas. Existem mortes e feridos, bem como traumas e, até, alguma falta de empatia – pelo menos para com algumas personagens mais secundárias. Estas perdas são transformativas e irão levar ao desenvolvimento de Peter em Peter Pan, num género de distúrbio de personalidade resultante de um luto mais gerido e envolvido em sentimento de culpa.

Apesar de toda a envolvência fantástica, Peter Pan de Loisel é uma experiência traumática que se afasta da tradicional história inocente. Cada regresso à realidade acrescenta novos níveis de negligência e quebra psicológica que levam Peter a enterrar-se cada vez mais no mundo fantástico – uma progressão lógica que termina com um final pesado mas compreensível e que levará também os leitores (cativados pelas personagens) a enfrentar a suja realidade.

Conclusão

Não é por acaso que escolhi esta série como uma das melhores leituras para apresentar no Fórum Fantástico. A história pega numa personagem conhecida e dá-lhe uma densidade fantástica justificando a conhecida caracterização como um rapaz que não se quer tornar adulto. Esta reinterpretação de Peter cria uma teia psicológica complexa e envolvente, que cativa os leitores, ao mesmo tempo que os confronta com um final brutal.