El Ángelus usa o nome e o enquadramento de um quadro clássico para tecer uma história de confronto com a arte – um encontro visual que recorda memórias infantis e, simultaneamente, leva a personagem para um caminho de auto descoberta. Uma leitura excepcional!

Angelus (1858) por Jean-François Millet

A História

Jean-François Millet criou, em 1858 o quadro Angelus, que actualmente se encontra exposto no Museu d’Orsay, em Paris. O quadro terá atraído especial atenção por retratar o mundo rural (puro e original), por oposição ao mundo urbano e industrializado, durante a colheita da batata. A obra poderá ter sido alterada pois no lugar do cesto, que agora contém batatas, poderá ter estado um bebé que morreu com poucos meses de vida.

Tomado de impulso, Clovis Chaumel visita um museu em Paris – algo que não lhe é característico. Confrontado com esta obra vive uma experiência transcendental, despertando-lhe memórias infantis. A partir deste momento vive obcecado com o quadro e procura incessantemente mais informação sobre ele. Quando, numa reunião escolar, conhece a professora de belas artes do filho, não resiste a falar um pouco do seu fascínio pela obra e em procurar mais informação sobre a mesma.

Clovis adopta um comportamento diferente. Arranja desculpas para faltar ao trabalho e procurar mais informação sobre o quadro ou sobre os episódios infantis de que agora se recorda. Estes novos hábitos provocam desentendimentos em casa, quer com a esposa, quer com os filhos.

A narrativa

A personagem principal, um homem banal e sem interesses, parece despertar para a realidade que o rodeia. Ainda que o quadro pareça ser a causa, mantendo-se no centro dos seus interesses, percebemos depois que outras razões existem para este despertar de Clovis, um homem que parecia adormecido para a vida e que agora cultiva outros interesses.

A história é contada a partir deste episódio chave, captando a atenção do leitor, intrigado com a reacção da personagem. Os episódios que se sucedem, em família, alicerçam este envolvimento para com a personagem e fazem com que os acontecimentos seguintes nos sejam compreensíveis.

Para além de acompanharmos Clovis, vamos tomando conhecimento da sua investigação sobre a obra de Jean-François Millet. Tal como a personagem, também pintores famosos estiveram obcecados pelo quadro, construindo reinterpretações, destacando-se Dali – o pintor que, ao ter uma percepção diferente da obra, levou a que se fizesse um exame na obra. Assim se descobriu que, sob a cesta de batatas, se encontrava um pequeno caixão infantil. Mas a relação de Dali com o quadro não se fica por aqui, tendo construído várias obras em referência a Angelus de Millet.

Para além de ser o elemento desbloqueador da narrativa, a história por detrás do quadro e a obsessão de Dali irão cruzar-se. Quanto mais elementos descobre Clovis, mais explora os episódios da sua infância e mais questiona a mãe, que nitidamente está a tentar escapar às suas perguntas e investigações. Este caminho de auto-descoberta não será fácil.

O relacionamento familiar com os pais foi disfuncional e, até, psicologicamente abusivo. Terá sido esta disfunção que explica a sua atitude na vida e o relacionamento disfuncional que tem, no início do livro com a esposa e com os filhos – um relacionamento que irá tremer com as diferenças de atitude.

A história decorre centrada em Clovis, e demonstrando sobretudo o seu ponto de vista (salvo por episódios pontuais). Sabemos pouco mais do que a personagem sabe, experimentamos as suas memórias e a forma como estas se interligam com o quadro e o seu presente. Apesar da perspectiva limitada, Angelus consegue ser genial em termos narrativos – a maior complexidade narrativa não advém de outras perspectivas ou outras personagens, mas histórias interiores e de factos que dão à história outros níveis de entendimento, interligando-se.

O desenho

A capa é, ela própria, uma reinterpretação do quadro, ainda que Giroud aproveite para fazer uma reinterpretação mais próxima no decorrer da história. Tal como no quadro visualizamos a cesta de batatas ao centro, e o homem do lado esquerdo. A grande diferença estará no posicionamento das duas mulheres e nas expressões das personagens. A esposa encontra-se do seu lado, mas quase em pano de fundo, enquanto que a professora de belas artes se encontra à direita com um ar leve e bem disposto que não condiz com o sentimento do quadro. Apesar de todas as semelhanças, o sentimento da capa distingue-se bastante do quadro original.

Em termos visuais, esta banda desenhada, quase recorda, por vezes, um filme. A cada mudança de cena apresenta-se um plano, muitas vezes elevado, da nova localização, seguindo-se, só depois, um aproximar das personagens e o demonstrar do que conversam. Por vezes seguimos os passos de Clovis e, como tal, o foco encontra-se nas suas costas enquanto se desloca.

Conclusão

El Angelus é uma leitura excepcional quer a nível narrativo, quer a nível visual. O desenho é rico e expressivo e a história, apesar de centrada numa única personagem, consegue ter um paralelismo com outra dimensão narrativa, a dos pintores e da obra de arte que se interliga com a da personagem. A combinação destas duas vertentes resulta num óptimo livro.