Eis mais um livro que se encontrava entre os mais esperados de 2023, e que só tive oportunidade de ler em 2024. A autora tinha-se tornado conhecida no meio da ficção especulativa com o seu primeiro livro, Autonomous, e foi com curiosidade que vi anunciar este, com um tema que me interessa bastante dentro da ficção científica. O que encontrei correspondeu a algumas expectativas, mas também trouxe alguns elementos inesperados.

A história vai focar-se em três eras distintas do processo de transformação de um planeta, usando, em cada era, uma personagem distinta. Mais do que fases no processo de transformação, cada parte apresenta diferentes evoluções em relação à utilização do planeta enquanto investimento privado. É que neste caso, o planeta está a ser transformado por uma empresa que tem em vista elevados rendimentos. Não é, no entanto, um processo que decorra de um dia para o outro, havendo a necessidade de várias centenas (ou milhares de trabalhadores) de anos para que o planeta possa ser disponibilizado para fins comerciais.

A primeira parte tem como personagem principal Destry, uma analista capaz de se interligar à rede de sensores do planeta, por forma a analisar o estado de equilíbrio de cada nicho ecológico. Para desempenhar as suas funções no terreno usa um alce que possui componentes biológicas e robotizadas, de nome Whistle.

O seu quotidiano relativamente pacífico é quebrado quando descobre, no planeta, uma comunidade subterrânea de hominídeos antigos – uma geração anterior de trabalhadores que deveria ter desaparecido numa fase anterior do processo de transformação planetária. Este encontro levanta algumas questões éticas. Se, por um lado, o planeta pertence a uma empresa privada, por outro, aquela comunidade desenvolve-se e luta pelo direito de existir. Não só luta, como possui controlo sobre o magma, podendo provocar elevados danos no planeta. 

Entre as várias fases vamos percebendo que, neste futuro distante, a humanidade tem capacidade para criar vários seres – alguns deles possuem semelhanças a animais que conhecemos, mas quase todos possuem,  para além dessas características conhecidas, auto-reconhecimento e pensamento lógico. Mas numa realidade onde até as pessoas são “construídas” e desenvolvidas por empresas, serão estas pessoas livres para decidir a sua própria vida, ou propriedade a ser usada pela empresa? Por outro lado, numa sociedade onde a vida pode ser criada, qual o valor de cada indivíduo? 

A história começa por apresentar uma caracterização mínima das personagens, focando-se mais nos acontecimentos e no que lhes acontece, do que nas suas motivações e detalhes. É algo que até pode ser compreensível se considerarmos que o interesse pode estar mais focado no processo de transformação planetária ou, até, de transformação social, de combate aos interesses privados. 

Ainda assim, havendo um arranque de cada fase sem grande envolvimento com as personagens principais, também existem, eventualmente, episódios que nos interligam a elas.  Esta interligação é rapidamente cortada quando a narrativa salta para a fase seguinte, apresentando outra personagem principal. Neste momento, sente-se uma quebra narrativa e voltamos ao ponto 0, como se tivéssemos a começar uma nova história, vários anos depois, no mesmo planeta. 

Estas quebras provocaram alguma dissonância e, até, quebra com o texto, parecendo existir alguma falta de objectividade no que se pretende para o livro – uma abordagem fria em relação à evolução, ou uma narrativa envolvente que cria interligação com as personagens e usa essa empatia para captar o leitor?  O texto acaba por não optar por um caminho, sendo este ponto, para mim, o grande defeito do livro. 

The Terraformers as created by generative AI (instructions by this blogger)

Ultrapassando estes saltos narrativos, o texto fornece vários cenários que criam questões éticas e morais sobre a tecnologia, o seu uso e a iniciativa privada. As criaturas que são criadas, podem possuir capacidade mental, mas por vezes, são instalados bloqueios na sua inteligência. Os seus direitos derivam das capacidades demonstradas segundo um padrão questionável, pelo que os bloqueios servem para manter estas criaturas controladas. Independentemente dos bloqueios, se estas pessoas foram criadas de propósito para servirem a empresa, até que ponto são entidades independentes com direito à existência isolada? Diria que esta é uma das questões fulcrais da narrativa, e ainda que pessoalmente tenha uma resposta, o relevante é ver como a autora desenvolveu a premissa.

Até que ponto os interesses privados se podem sobrepor aos interesses públicos? Como, nestas circunstâncias, formar um governo? Qual o valor de um indivíduo? Percebemos que a acção decorre num planeta onde o dinheiro se sobrepõe à vida. Quer em relação aos indivíduos criados, quer em relação ao ecossistema que pode ser degradado mediante elevados valores financeiros (episódios que se opõem à constante preocupação com a manutenção do equilíbrio ecológico). Adicionalmente, percebemos que existem pessoas que, tendo nascido livres, são escravizadas para poderem pagar as suas dívidas financeiras, e que é possível que usar a opinião pública (fora daquele planeta privado) para exercer pressão.

No final, fiquei com sentimentos mistos. The Terraformers tem momentos excepcionais e brilhantes. Ainda que cada fase recomece lentamente a ligação ao leitor, com novas personagens e circunstâncias, também existem momentos mais familiares ou íntimos, que conferem carácter a alguns personagens. As ideias desenvolvidas são interessantes, bem como as possibilidades e as questões morais / éticas que abordam. Diria que a quebra feita a cada fase, deixando a personagem anterior sem um desfecho próprio é o principal elemento para não ter achado todo o conjunto brutal.