Mark Lawrence é um prolífero escritor de fantasia, mais conhecido por trilogias como Broken Empire (o primeiro volume foi finalista para os prémios David Gemmell e Goodreads) ou Red Queen’s War. Em Portugal, foi publicada a trilogia dos Espinhos (The Broken Empire) e está em lançamento a trilogia A Guerra da Rainha Vermelha, ambas pela TOPSELLER.

É um autor pelo qual já tinha tido alguma curiosidade mas que ainda não me tinha decidido a ler – até ver o lançamento do seu livro mais recente, este que decorre numa biblioteca gigante. Trata-se, também, de uma trilogia, mas posso adiantar que a leitura pode ser feita de forma estanque, sendo o segundo livro (programado para Abril de 2024) uma história que tem, até, outras personagens principais, de acordo com a sinopse.

A história

O livro começa por nos apresentar Livira, uma jovem rapariga, pequena, mas destemida, órfã de pais e de excelentes capacidades intelectuais – capacidades estas que se traduzem numa memória prodigiosa e em rápidos cálculos mentais. Apesar do seu tamanho, não receia enfrentar rapazes mais velhos, sobretudo quando se julga ofendida.

Livira vive no deserto, com uma pequena tribo que se estabelece onde conseguir produzir alguma coisa. A vida é dura e irregular, fazendo com que a tribo tenha, de vez em quando, de procurar um novo local. Apesar das dificuldades, a vivência é pacífica – pelo menos até ao dia em que são atacados por Sabbers. Livira acorda amarrada, em viagem e entre várias das restantes crianças. Um salvamento rápido por soldados leva-a à grande cidade onde existe uma biblioteca mítica.

Dadas as suas diferentes capacidades e apesar de ser do povo do pó (referência às tribos que vivem no meio do deserto), Livira é aceite na biblioteca como aprendiz. A sua irreverência, e as suas origens, levam-na a ter diversas aventuras na biblioteca onde se pode andar vários dias sem passar no mesmo corredor.

Mas a história não se centra só em Livira. Numa outra biblioteca, igualmente enorme, encontramos Evar. A realidade deste rapaz é, no entanto, bastante diferente. Conhecendo apenas os irmãos que vivem com ele, e os dois autómatos que os vigiam e cuidam, Evar viveu toda a sua existência encerrado na biblioteca. Um dia, resolve explorar os limites da biblioteca descobrindo uma forma de escapar para outras realidades. Mas não sem consequências.

A história prossegue, alternando as duas personagens e mostrando como vivem na biblioteca e interagem com os restantes. A narrativa foca-se mais em Livira, que cresce entre livros e bibliotecários. mostrando as particularidades de um local que parece ter sido criado com tecnologia de ponta – tecnologia essa que, com as guerras cíclicas tem sido esquecida, sendo a biblioteca o repositório que permite recuperar a civilização.

Crítica

Para além de alternar entre as duas personagens, a história vai tendo saltos narrativos, focando-se apenas nos episódios mais relevantes. Acompanhamos Livira enquanto explora a biblioteca, em dois episódios chave com os restantes assistentes, mas não nos é detalhada a sua vivência nem verdadeiramente caracterizada os seus relacionamentos. Mesmo a caracterização da própria personagem não é completa e julgo que precisaria de algo mais para criar uma Livira que fosse coerente em toda a narrativa.

Este detalhe na caracterização das personagens não é gritante, como nalgumas obras, mas é algo que, sendo mais trabalhado poderia ter tornado este livro quase perfeito. Digo quase, porque há, também, a meu entender, alguns detalhes menos coerentes sobre os bibliotecários ou sobre a forma como as profissões são determinadas e seguidas na cidade. Ainda, achei que os vários conflitos ou enigmas se resolvido quase em simultâneo – algumas componentes poderiam ter sido revelados no decorrer do livro, ao invés de concentradas no final.

Ultrapassando estes aspectos menos perfeitos, The Book that Woudn’t Burn é um pageturner, um calhamaço de mais de 500 páginas que instiga o leitor à progressão rápida. A narrativa prepara a resolução final, com pequenas revelações e contratempos, aligeirada pelo sentimento de urgência com a guerra que se aproxima. A par com esta tensão crescente, as interacções entre as personagens também vão apresentando alguns conflitos ou urgências, o que ajuda à leitura acelerada.

Uma das componentes mais interessantes do livro é, sem dúvida, a construção do mundo. A história decorre num mundo onde existe uma biblioteca quase interminável, onde é possível andar por vários dias sem chegar ao final. Existem portas que não se abrem. Outras que precisam de uma atenção especial. Cada sala possui uma construção diferente e particular, existindo zonas de tanta luz que a sombra desaparece e zonas de escuridão absoluta. Há livros dos vários idiomas e sobre os mais variados assuntos e, claro, livros de não ficção. Mas também existem os assistentes, criaturas robotizadas que nem sempre ajudam, respondendo de forma hermética às questões que recebem. Mas também existem animais robotizados que agem de forma muito distinta a estes assistentes.

Todos estes detalhes contribuem para criar um mundo rico em curiosidades originais, sendo que tudo roda em torno da biblioteca. Este é, pois, o cenário ideal para qualquer um que goste de livros, tornando-se fascinante quer pelo conceito em si, quer pela existência de vários mundos onde encontraremos a biblioteca infindável.

Imagem original que dá origem à capa

A história apresenta, também, diferentes espécies sapientes – espécies em luta que, pela perspectiva de Livina, são animais com pouca inteligência. Esta percepção advém da intensa publicidade negativa, uma hostilização e redução do outro a selvagem. Mas também do lado dos inimigos existe uma campanha semelhante, sendo esta lógica de redução mútua que justifica os longos anos de guerras sucessivas.

Na prática, este livro encontra-se entre os géneros ficção científica e fantasia. Por um lado, encontramos uma biblioteca enorme, que parece saída de uma história de Borges, bem como diferentes criaturas inteligentes e alguns detalhes que parecem fantasia. Por outro, percebemos que alguns destes detalhes não são magia, mas tecnologia avançada, que pode ser percepcionada pelos autómatos ou por algumas passagens de livros que relatam a existência anterior de poderosas invenções. Nem tudo é, no entanto, explicado por ciência.

Apesar do livro perceber a uma trilogia, os volumes podem ser lidos isoladamente. A história de The Book that woudn’t burn tem um fim, e o segundo volume promete uma narrativa em torno de personagens que, neste primeiro livro são secundárias, com um foco que parece ser totalmente diferente deste primeiro livro.

Conclusão

The Book that Woudn’t Burn de Mark Lawrence não é dos melhores livros de ficção especulativa que já li ainda que deva constar entre os melhores do ano. Tem alguns elementos espectaculares na construção de mundo – claro que o conceito de uma biblioteca interminável é fascinante, assim como o facto de ser o que permite o renascimento de uma civilização; bem como personagens curiosas e uma queda para os detalhes mimosos que se tornam fascinantes. Apesar de todos os aspectos positivos, precisava de uns toques a nível de edição, sendo este o motivo para não ser tão bom quanto um Mark Charan Newton (que consegue ser mais aborrecido nas descrições e progressão do texto, mas que é mais coerente e investe mais na caracterização de personagens).