Eis outro lançamento da Ala dos Livros que se distingue tanto pela qualidade da edição como pela obra publicada. O Burlão das Índias apresenta-se como uma história dentro de uma história, uma meta literatura rocambolesca, uma trapaça que pode ser comparada ao Baudolino de Umberto Eco – mas que consegue ser mais movimentada e ainda mais carregada de reviravoltas. Uma história excepcional que se destaca tanto em narrativa como em visual.

A história

O livro apresenta-se como sendo uma segunda parte da História da vida do aventureiro de nome Dom Pablos de Segóvia, referindo-se ao livro La Vida Del Buscón, de Francisco de Quevedo, que data do século XVII. O livro de Quevedo apresenta a história de homem pobre, filho de um ladrão e de uma bruxa, e as suas aventuras enquanto escudeiro e como pessoa de maus hábitos.

A história prossegue a partir daí, nesta banda desenhada, mostrando Dom Pablos no Novo Mundo, muito tempo depois, moribundo, contando a sua história a ouvintes interessados em episódios específicos. Dom Pablos parece estar a alongar-se propositadamente em pormenores desnecessários para os ouvintes, mas interessantes para os leitores, tecendo um relato carregado de elementos mirabolantes, onde revela o seu espírito de trapaceiro, interesseiro e preguiçoso.

Conhecido como Terra de Riquezas, o Novo Mundo revela-se uma decepção para Dom Pablos, que esperava poder deixar as suas humildes origens e tornar-se um homem nova, captando novas oportunidades. Mas aqui, também, aprende que só os de ascendentes ricos podem, também aqui, ascender a riquezas e posições de interesse, num eterno jogo de poderes.

A narrativa

A história começa como uma narrativa clássica de burlões, misturando mitos propagados com meias verdades e falsos artefactos. Dom Pablos tem um dom para inventar e tecer histórias, manobrando nas mais adversas situações e tentando revertê-las a seu favor. Moribundo, conta, numa primeira fase, a sua história.

Este primeiro nível narrativo mais não é do que uma história dentro de uma história, em que a fronteira entre a ficção narrada e a ficção vivenciada pela personagem se misturam, deixando-nos na dúvida sobre vários detalhes – uma espécie de metaliteratura, típica das histórias contadas por burlões em que a mesma história tem várias interpretações e várias perspectivas, contando-se, em determinada altura, a vertente que mais se adequa.

No final, a narrativa quebra com estes ciclos, afastando-se e retornando ao ponto de origem. Esta última parte distancia-se, não só por quebrar o ciclo, mas também por não se opor – parece isolar-se num conjunto de episódios ainda mais inacreditáveis, como se se tratasse de uma nova vida da personagem, uma nova oportunidade de tecer uma burla excepcional.

A narrativa é, sobretudo, mirabolante, no sentido em que se torna demasiado delirante e incrível para ser verdade. Bem, na realidade, as verdades são muitas, diluídas por cruzamento com outras ficções e invenções, resultando numa mescla inicialmente divertida e pitoresca, mas mais séria e pesada com o avançar das páginas.

O Burlão nas Índias é uma sucessão de aventuras mirabolantes onde se referem todas as expectativas do Novo Mundo, que traz novas oportunidades para quem as comanda, mas que consegue replicar a Velha Europa, impedindo a subida social e mantendo os papéis pré-destinados conforme a ascendência familiar.

O Desenho

O trabalho de Guarnido é bem conhecido de outras histórias – sobretudo de Blacksad. Aqui encontramos o mesmo nível de detalhe, com algum realismo nas proporções e paisagens, destacando-se o contraste da expressividade exagerada das personagens que torna as interacções ainda mais caricatas.

A edição

Vale a pena destacar a qualidade da edição portuguesa – para além da capa dura (com baixo relevo nas letras) e do papel grosso, luminoso q.b., destacam-se as marcas de água nalgumas páginas, bem como o quadro que acompanha a edição de coleccionador. É um livro com uma edição excelente.

Conclusão

O Burlão nas Índias é uma formidável leitura rocambolesca, carregada de reviravoltas, que nos envolve na sua expressividade, e nos leva ao engano, tal como às personagens que Dom Pablo trapaceia. A narrativa é surpreendente e imaginativa, trazendo-nos uma história dentro de uma história, trocando detalhes e perspectivas. Uma leitura aconselhável para todos os leitores.