Cá continuo, com a leitura de mais um livro de T. Kingfisher que, novamente me surpreendeu, tanto pela premissa original, como por possuir algumas diferenças curiosas em relação a outros livros da mesma autora. Trata-se do primeiro livro de uma trilogia, mas que pode ser lido de forma independente.
A história
Os deuses chamam a si comuns mortais para os servirem. Mas no mundo aqui apresentado, este chamamento liga as pessoas a um Deus, e concede-lhes alguns capacidades ou poderes específicos. No caso dos paladinos, como Stephen, tal implica a capacidade de entrar num frenesim de batalha que pode ser altamente destrutivo.
Mas quando o Deus de Stephen morre (uma ocorrência sem memória anterior), os paladinos caem mortos no chão, ou entram num estado catatónico. Felizmente para esta história, Stephen é um dos que entra em estado catatónico. Três anos depois vamos encontrá-lo ao serviço do Deus Rato, sem a usual ligação a um Deus, mas como uma forma de devolver o favor dos paladinos terem sido cuidados pelos serviçais desta outra entidade.
É enquanto guarda-costas de um curandeiro que salva uma donzela de uma perseguição, fingindo conhecê-la e usufruir de serviços íntimos. O momento é constrangedor para ambos, mas Stephen porta-se de forma exemplar. Já Grace, a tal donzela em perigo, é uma fazedora de perfumes com um passado movimentado e uma tendência para situações embaraçosas.
Crítica
Paladin’s Grace situa-se num mundo de contornos medievais, um típico mundo de fantasia, sem tecnologia ou ciência avançada. Ainda assim, possui alguns detalhes que poderiam ser considerados mais evoluídos que a idade medieval que conhecemos – mais particularmente, o facto de existir a possibilidade de autopsiar cadáveres, o que leva a uma melhor compreensão das causas de morte. Este detalhe será particialmente importante, em pelo menos dois pontos fulcrais da história.
Para além do melhor entendimento da medicina, neste mundo existem Deuses que se interligam às vidas de alguns humanos. Os comuns mortais que se interligam a estes Deuses constituem Casas que detêm algum poder na regulação da cidade e nas relações comerciais ou políticas. Este elemento vai ser aquele que determinar vários dos elementos na história, fornecendo possibilidades curiosas, mas sem utilização excessiva de magias ou super-poderes.
Este, aliás, é um dos elementos que costuma apreciar nos livros de T. Kingfisher. Aqui o superpoder concedido é usado uma ou duas vezes, em situações limite. Em Minor Mage o poder do mago é bastante limitado, quase ridículo, mas é usado de forma original. Em A Wizard’s Guide to Defensive Baking, a personagem só tem poder sobre massa de bolos ou pão. Nalgumas narrativas, não existe qualquer poder.
Outro ponto diferenciador, costuma ser o tipo de personagens que as narrativas apresentam. Em Nettle and Bone a história apresenta heroínas já com uma certa idade, em The Hollow Places ou em What Moves the Dead encontramos personagens centrais LGBTQ+. Mas todas estas personagens são apenas pessoas e as suas particularidades são uma característica adicional e não algo que toma conta do sentido da história – apenas se encontram no local errado, dando origem à história.
De uma forma genérica, as personagens são peculiares. Desastradas e esquecidas, nem sempre sabendo o que dizer na altura certa e criando situações constrangedoras, com imperfeições mas também, por vezes, com algum sentido de humor – nalguns casos um humor negro e ácido que é usado para quebrar a tensão narrativa, e que nos recorda as reacções de algumas pessoas em situação de stress.
Também aqui, em Paladin’s Grace, encontramos personagens peculiares. Grace é uma fazedora de perfumes desastrada e distraída, uma órfã que foi retirada da instituição para se tornar numa aprendiz. Traumatizada com situações passadas, não está muito disponível para um relacionamento amoroso, mas parece que as circunstâncias a fazem cruzar-se demasiadas vezes com o Paladino. Já o Paladino, um homem de armas habituado a ver corpos decepados, é mais um homem de acção do que de pensamento, mas já não sabe lidar com sentimentos e que vive com receio de entrar em modo destrutivo. Em momentos de espera (que são muitos enquanto guarda-costas) faz meias em malha.
Personagens peculiares num ambiente medieval – mas afinal, o que faz mover a narrativa? Uma intriga com tentativas de assassinato a altas entidades e assassinos desastrados que se sacrificam antes de poderem falar. Paralelamente, um assassino anda à solda na cidade, deixando apenas para trás as cabeças das suas vítimas.
Apesar do ambiente fantástico, a realidade é dura. Existem maridos abusivos e julgamentos injustos, existem crianças a desempenhar funções de adultos e mortes que ninguém investiga. A autora não constrói cidades perfeitas e usa estes detalhes para debatar algumas questões mais actuais, pela voz das personagens, de uma forma que faz sentido e que se enquadra na narrativa.
Ainda que o livro possua todos estes elementos que considero positivos, foi, dos livros da autora, o que mais me custou a entrar. Enquanto que as restantes narrativas são polidas e relativamente directas, apostando no desenvolvimento constante do enredo, Paladin’s Grace é mais pausado e demora-se na caracterização da personagem, com diálogos e episódios que poderiam ser mais objectivos e rápidos.
É, no entanto, e apesar de esta menor objectividade, uma narrativa engraçada, com personagens peculiares e de caracterização cuidada, e elementos de construção originais bem colocados e bem contidos – aliás, este é, novamente, um dos aspectos que mais admiro nos livros da autora, que consegue não se exceder com todas as possibilidades de uma determinada ideia.
Conclusão
Paladin’s Grace é o primeiro livro de uma trilogia de contornos medievais e pequenos detalhes fantásticos que alterna entre a exploração de um interesse romântico entre dois desastrados, uma intriga política com assassinatos à mistura, e um assassino que só deixa cabeças como resultado dos seus crimes. Apesar de não ser o melhor da autora, é um bom livro que pode ser lido isoladamente e que aconselho a quem queira uma fantasia leve e despreocupada, mas que consegue deixar vários sorrisos ao longo da leitura.