Hollow Places, da mesma autora, foi uma leitura que me cativou, apesar de percepcionar que não é, do ponto de vista formal, excelente. A narrativa é relativamente simples e a premissa, apesar de bem explorada, deixa alguns pontos em aberto. Ao ver novo livro da autora, desta vez com um título curioso, resolvi-me a adquiri-lo, sem sequer ver a sinopse.

A história

Num pequeno reino existe um porto bastante cobiçado pelas nações vizinhas. Tão cobiçado que a existência deste reino está ameaçada – de forma a subsistir, a rainha vê-se obrigada a fazer umaaliança com uma das nações vizinhas, propondo a sua filha mais velha para casamento com o príncipe. Aquando da morte da filha mais velha, envia a seguinte para se casar, colocando a mais nova, Marra, num convento, não vá esta gerar um potencial herdeiro antes da sua irmã.

Marra é uma princesa peculiar. Sem grandes capacidades diplomáticas, adapta-se rapidamente ao convento e começa a ajudar a freira que serve de curandeira para os aldeões da região. Quase esquece a vida anterior, não fosse ser chamada para o nascimento dos sobrinhos, de quando em quando. É numa destas idas que questiona a irmã sobre tão regulares gravidezes, sendo elucidada que é uma forma de fugir à brutalidade do príncipe.

Marra decide fazer algo em relação ao destino da sua irmã (e do seu, já que seria a próxima a casar-se se fosse necessário) e parte para procurar uma bruxa de artes negras que poderá ajudar a matar o príncipe.

Outra capa para o mesmo livro

Crítica

A sinopse auspicia uma fantasia negra, quase de terror – género no qual a autora não é estreante, pelo menos com Hollow Places. Sem força nem capacidades de luta, Marra percebe que precisa de procurar a força da magia negra para concretizar o seu plano – para tal procura a bruxa num cemitério de outras terras, percebendo que esta tem poderes sobre os mortos.

Ao longo da narrativa, que se apresenta como uma espécie de demanda fantástica, são vários os horrores com os quais Marra se depara ou nos descreve. Mas, na verdade, estes horrores pouco importam e pouco chocam quando comparados com o abuso sofrido pela irmã. Entre mortos chamados pela bruxa, fantasmas vingativos, criaturas mágicas e cães de ossos, o que realmente se destaca são as atrocidades cometidas por um homem violento.

Mas esta postura agressiva do príncipe não é a única que se destaca. A própria Marra, viajando incógnita e sozinha, depara-se com homens que tentam questionar o seu à vontade e agredi-la – pelo menos até perceberem que se trata de uma freira, justificação plausível para andar sozinha no mundo enquanto mulher.

O motor da história acaba por ser a violência doméstica, aqui perpetuada pelo príncipe para com as suas esposas. Um detalhe ácido nas histórias de princesas que se casam mas que, neste caso, não vivem felizes para sempre. Mas o príncipe não será o único – aliás, quando Marra conta as circunstâncias do casamento da irmã, é recebida com reconhecimento de outras situações semelhantes. A violência no casamento não é a única perpetuada por homens, sendo que alguns não resistem a intimidar uma jovem sozinha. Existem, no entanto, também os homens respeitadores e correctos que conseguem ser másculos, mas também, apaixonados.

A história cruza elementos de horror com o absurdo. Uma galinha possuída pelo demónio, uma “madrinha” com elevada tendência para as maldições e fantasmas rabugentos. Ao longo do percurso, Marra encontra outras pessoas que se lhe juntam na demanda por diferentes razões. Desde a bruxa com poderes maléficos (rabugenta, mas bem intencionada) à madrinha que tem mais jeito para maldições que bençãos. O grupo é peculiar e não faltam as tiradas sarcásticas e o humor ácido, típicos de personagens de mau humor, rabugentas e refilonas.

Existem, claro, alguns clichés típicos das histórias de fantasia. As tarefas impossíveis de concretizar, a demanda por objectos que ajudarão a concretizar a missão, um grupo crescente de parceiros e amigos que se unem com uma missão comum. Mas estes elementos são caracterizados de uma forma original e os episódios cruzam elementos aterrorizadores com detalhes cómicos ou irónicos levando a um ambiente diferente, mas envolvente.

o abuso masculino – o respeito pela posição de freira – dentro e fora de um casamento

Outro elemento distintivo e diferenciador são as personagens. A personagem principal é uma princesa com pouco entendimento social, que vira freira, pouco dada a côrtes e vestidos, mas com uma tendência para as artes negras. Tanto a bruxa como a madrinha são personagens femininas com mais idade, mas que executam um papel fundamental na missão – algo que costuma ser raro em livros, onde as mulheres mais velhas costumam ser as vilãs.

Estes vários factores funcionam como uma outra visão sobre os contos de fadas- bençãos inúteis de madrinhas (que não propriamente fadas), casamentos infelizes pautados por violência doméstica, cenas comicamente irónicas ou absurdas que usam os clichés da magia. A autora usa todos estes elementos para criar um universo fantástico quase comum, mas com toques geniais e reviravoltas peculiares.

A história não é, no entanto, perfeita, havendo um final que ajuda a compor a história mas que se tornar demasiado expectável.

Conclusão

Depois deste livro, resolvi-me a encomendar todos os da autora que ainda não tenho. Apesar do final (que é um bom final, mas expectável) adorei a leitura. Nettle and Bone é uma história fantástica que usa os elementos comuns a tantas outras histórias de contos de fadas, mas que transforma os papéis tradicionais, e contorce as benções, as maldições, e, claro, os papéis que as personagens parecem pre-destinados a exercer.