Quem anda há mais décadas no meio fala de uma época longínquoa em que se traziam, com bastante regularidade, os autores mais importantes do género a Portugal. Fala, também, de uma quantidade absurda de livros publicados que englobava clássicos e novidades. Como exemplo desta época dourada, ficaram as extensas colecções de livros de bolso, Argonauta, Caminho ou Europa-América.
Pois bem, nessa época, eu não conhecia nada disso, pelo que não tenho uma perspectiva tão catastrófica quanto aos tempos actuais. O pico do género que conheço tinha alguma publicação regular (com as colecções Europa-América há 20 anos ou a da Presença). Mas foi há uns 15 anos que tive finalmente acesso regular à internet e me apercebi que existiam outros leitores dos géneros da ficção especulativa, ficção científica, fantasia e horror. Existiam, até, autores portugueses! E, espante-se, existiam novas editoras a publicar livros clássicos, a produzir antologias, e autores portugueses com boas obras que nada ficavam a dever às estrangeiras.
Falava-se de ficção científica e fantasia. Mas sobretudo em fórums (Filhos de Athena e Scifi freaks com os respectivos canais IRC) onde conheci algumas das pessoas que ainda hoje são referências no género. A Saída de Emergência estava a dar os primeiros passos, com livros como À Boleia pela Galáxia, Elric ou a Invenção de Leonardo de Paul McAuley. A Safaa Dib ainda não pertencia à editora mas organizava, com o Rogério Ribeiro, o Fórum Fantástico. Tanto a Gailivro, como a Editorial Presença publicavam, regularmente nos géneros da ficção especulativa, onde se destacavam vários autores portugueses (João Barreiros, Luís Filipe Silva, Filipe Faria, Ricardo Pinto, Sandra Carvalho, Inês Botelho). Existia, ainda, uma pequena editora que lançou poucos livros, em edições de pequena tiragem, mas de grande qualidade – A Livros de Areia.
Então, quais têm sido as grandes mudanças no género em Portugal na publicação? Bem, a maioria destas grandes editoras quase que deixaram de publicar no género. Quer autores portugueses, quer autores estrangeiros. E quando o fazem raramente indicam o género a que os livros pertencem. Ficam-se pela etiqueta de ficção, e algumas descrições mais filosóficas sobre o conteúdo. A Saída de Emergência tem publicado bons livros, mas são escolhas mais conservadoras e menos arriscadas. Já as restantes, fugiram totalmente da ficção científica explícita, publicam alguma fantasia solta e quase nada de horror. Mais recentemente, a Topseller tem-se distinguido com boas leituras de autores menos conhecidos em Portugal e nem sempre ligados à indústria cinematográfica.
A publicação de autores portugueses tem sido feita, sobretudo, por pequenas editoras. Destacam-se as edições de autor, a Imaginauta e a Editorial Divergência. Existe, sobretudo nestas duas editoras, um esforço em publicar romances e contos em antologias, mas não existe nenhuma publicação regular em formato revista para além da Bang!. As fanzines praticamente desapareceram. Já a crítica literária de ficção especulativa é quase inexistente nos meios oficiais – a crítica centra-se sobretudo em livros políticos, obras sem grande componente narrativa, mais filosófica e introspectiva. Restam os blogues. Restam os comentários em grupos de facebook. O que não é mau, mas não é comparável em termos de exposição.
Então e os eventos?
Nesta componente acho que estamos a evoluir a passos largos. O Fórum Fantástico persiste, conseguindo melhorar a cada ano, e têm surgido outros eventos interessantes no género. O Sci-fi LX tem decorrido no IST. A Saída de Emergência tem organizado o seu próprio evento fantástico (com uma grande adesão de leitores), o Festival Bang!. Surgiu a Comic Con no Porto que passou este ano para Lisboa (com todos os seus defeitos e vantagens, mas é mais um meio para os que gostam do género). O Contacto organizou-se pela primeira vez o ano passado e promete regressar agora em 2019! Estes novos eventos não se centram apenas nos livros, mas também em todas as outras vertentes, com o intuito de juntar fãs e proporcionar bons momentos.
Prémios literários
Ainda que a publicação seja, sobretudo, em pequenas edições, existem alguns prémios para incentivar novos autores. Mesmo que não exista propriamente uma indústria onde possam crescer (pelo menos não comparável à que existe nos mercados anglosaxónico ou francófono). O Prémio Bang! organizado em parceria com a FNAC possibilita a publicação de contos na revista Bang!, o prémio António de Macedo possibilita a publicação de um livro pela Editorial Divergência (para além de conceder um prémio monetário) e o Prémio Ataegina premeia um conto, mas não confere, ainda, possibilidade de publicaçao. Também durante o Fórum Fantástico são atribuídos prémios para diversas categorias – os Prémios Adamastor. Lá fora, Rui Zink venceu o prémio Utopiales com uma distopia.
E a projecção dos autores portugueses para o estrangeiro?
Era baixa e continua a ser baixa. Entre 2001 e 2006 o Luís Rodrigues participou (e mais tarde assumiu) a publicação de Fantastic Metropolis e em 2007 João Barreiros teve um conto publicado numa antologia estrangeira em 2007 (The SFWA European Hall of Fame). Mais recentemente, Dormir com Lisboa de Fausta Cardoso Pereira venceu um prémio galego e foi publicado em Espanha, Mário de Seabra Coelho teve dois contos publicados em revistas anglosaxónicas e foi um conto deste autor que a Imaginauta escolheu para levar a uma convenção internacional para dar a conhecer algo do que se produz em Portugal.
Os próximos anos
Enquanto algumas iniciativas recuperam livros quase esquecidos de autores portugueses de ficção científica (como o Projecto Adamastor), planeia-se uma continuação dos eventos para os próximos anos (se bem que se denota que alguns irão, decerto, sofrer reestruturações). A Imaginauta e Editorial Divergência já prometeram que o próximo ano trará duas mãos cheias de novos livros de autores portugueses.
O que falta?
1. Uma crítica consistente que consiga chegar a novos leitores. Novos leitores trarão, sem dúvida, um maior investimento no género e a possibilidade de fazer crescer a qualidade e a quantidade de publicações. O Candeias tem feito um óptimo trabalho na agregação de comentários a livros de ficção especulativa, mas falta algo que faça chegar os livros a um público maior.
2. Publicações regulares sobre o género que informem e envolvam novos leitores. A Bang! é uma excelente revista, mas não pode continuar a ser a única. Por outro lado, a diversidade de editoras que publicam autores portugueses também é baixa e não favorece o surgir de novos autores (apesar dos esforços das pequenas editoras nacionais).
Notas finais – esta perspectiva baseia-se, sobretudo, nas pessoas que fazem parte do fandom, as que têm como interesse uma das vertentes da ficção especulativa. Ficam de fora as publicações por Vanity Press.
Esqueceste-te da Relógio d’Água que recente (e surpreendente)mente tem publicado bastante FC.
Quanto à crítica consistente, concordo que falta, mas tenho enormes dúvidas que seja possível, ou sequer desejável, que ela surja nos tais “meios oficiais” de que falas. Por um motivo simples: estão numa crise profunda, em queda precipitosa de tiragens e leitores. Julgo sinceramente que a crítica literária em blogues (toda ela) tem mais público neste momento do que a crítica literária nos meios oficiais, e que isso só tende a aprofundar-se. Por isso acho mais viável apostar nos blogues, na sua multiplicação, diversificação e divulgação, e em não repelir de imediato e com sete pedras na mão quem vier de fora falar do que fazemos, mesmo que não fale tão bem como gostaríamos.
Não me esqueci. Considerei-a. Mas… A relógio está nesta secção ” E quando o fazem raramente indicam o género a que os livros pertencem. Ficam-se pela etiqueta de ficção, e algumas descrições mais filosóficas sobre o conteúdo.”. Os livros de Dick que publicaram foram indicados como não sendo ficção científica. O programa editorial para 2019 (que já publicaram não inclui livros de fc ou f).
Quanto aos meios oficiais, acho que estão a sofrer do problema que eles criaram, tanto para livros como para cinema. Durante muitos anos só publicavam críticas de obras pseudo-intelectuais. O público habituou-se a ignorar as críticas dos senhores de nariz empinado. Acho que neste momento estamos num momento de redefinição.
Corrijo-me. Mais de dois anos depois voltei a ouvir a entrevista. Não foge totalmente mas diz que é mais importante pela parte filosófica do que pela parte de ficção científica. “(nos livros de FC) não vemos guerras de marcianos nem tecnologia demasiado surreal ” (ou algo semelhante). O que me leva a pensar que não leu muitos livros do autor… Depois ainda fala de um irmão do autor que também seria escritor de FC (que não existe, Philip K. Dick não tinha um irmão esccritor).
O panorama aí de Portugal está bem semelhante ao que temos no Rio, com algumas editoras um pouco maiores apostando em lançamentos mais “seguros” e umas poucas, como a Draco (que publicou alguns autores portugueses em coletâneas), a Avec e a Pendragon tentando sobreviver com livros e quadrinhos nacionais de gênero. Em termos de eventos, também os nossos cresceram em número, e ocorrem boa parte das vezes dentro de eventos literários maiores, ou eventos mais especificamente voltados para quadrinhos. De resto… duas grandes redes de livrarias faliram, venda e distribuição são muito difíceis, muitas pessoas estão optando por publicar de forma independente, frequentemente na Amazon.
Adoraria participar de um evento em Portugal. Quando puder ir (não será já), vou me informar para ver se consigo fazer coincidirem as datas!
Aqui faliu uma distribuidora – a falência teve mais impacto na parte da banda desenhada e levou a terminar uma grande editora de BD e revistas.
AInda não há amazon por aqui. Há alguns autores a publicar na Amazon mas não sei se têm grande visibilidade no mercado português.
Em relação a vir a um evento em PT, costuma haver em Março (contacto) Agosto (scifi lx) setembro (comics con) setembro / outubro (forum fantastico) novembro (mensageiros) e as vezes há outros eventos mais pequenos pelo meio 🙂
Muito obrigada pelas informações! Vou anotar.
Aqui muitos autores publicam pela Amazon e só pela Amazon, e muita gente só faz compras pelo site, seja de livros físicos, seja de e-books. Têm surgido pequenas editoras, mas outras (grandes, inclusive), se retraíram bastante, algumas encerraram atividades. Acreditamos que 2019 será um ano de recuperação, mas… Vamos torcer.
Grande abraço deste lado do mar.
Aqui criaram-se projectos alternativos – como a https://convergencia.com.pt/index.php. Basicamente é uma plataforma para encomenda de livros. Quem tos envia é a editora / autor. O autor / editora paga uma taxa à convergência muito inferior ao que é usual em distribuidoras / livrarias. Algumas editoras têm os seus próprios sites ou aceitam encomendas pelo facebook. Ou vendem nos eventos. As edições são de poucos volumes e, como tal, há que garantir o máximo de % sobre o preço de venda (e lojas como a FNAC tornam isso impossível).