1984 é um clássico da ficção científica, num dos sub-géneros considerados como soft science fiction (com foco nas ciências sociais, por oposição à hard scifi), as distopias. Apesar de beber uma grande inspiração a Nós de Zamyatin, destaca-se pela perspectiva através da qual nos apresenta a história, um homem que vai revelando-se menos hipnotizado do que deve com o regime distópico. Esta banda desenhada concretiza a adaptação de 1984 num formato visualmente interessante, mas, a meu ver, demasiado verboso.

A História

Mas antes de falar sobre a adaptação, começo com a história. 1984 é, simultaneamente, a história de um indivíduo e a dissecação de um regime totalitário e autoritário. Por um lado, segue a perspectiva de um homem numa realidade em tempo incerto, por outro, usa-o para nos apresentar a forma como os regimes totalitários usam vários factores para se imporem e manterem a adesão do povo perante as maiores aberrações.

Winston Smith é um dos homens do Partido. Recorda-se de um tempo diferente, um tempo de fome e miséria anterior ao regime, uma infância em que ainda teria laços familiares – algo impensável nos tempos em que agora vive. A sua função está ligada à adaptação da história. Sempre que é realizado um comunicado que não se coaduna com o que foi dito, previsto ou noticiado anteriormente, as notícias ou livros, devem ser totalmente reescritos para demonstrar uma nova coerência. Não se espera que um habitante desta sociedade seja capaz de pensar por si, devendo, apenas, assumir como verdade o que lhe comunicam. E se, após o expurgo de informação, algum papel disser o inverso, deverá, decerto ser resultado de sabotagem dos inimigos do estado.

A vigilância é constante. Não apenas no exterior, mas dentro de cada casa, através de cada televisor. Ninguém sabe quando está a ser vigiado, e uma única expressão facial pode ser motivo para se ver em sarilhos com a polícia da mente. Mas não é apenas o televisor que vigia e denuncia. Também os membros da família são encorajados a ser mais leais para com o estado e as ligações afectivas são mal vistas.

Não existem leis. Nem proibições. E é exactamente neste vazio, nesta ausência de fronteira que assenta parte do terror desta distopia. Se as regras não são claras, tudo pode ser usado para justificar uma sessão de tortura pela polícia da mente. Aqueles que são considerados traidores desaparecem, deixam de existir e, como tal nunca existiram. São apagados de qualquer referência biográfica e deixam de ser referidos pelos restantes.

A par com tudo isto, esta nação encontra-se constantemente em guerra. As notícias das batalhas são constantes e as vitórias antecedem sempre algum aperto nas rações diárias. Este inimigo externo serve é usado para impor uma necessidade de protecção e para justificar as supostas sabotagens dos inimigos internos, sem dúvida aliados ou espiões que põem em causa toda a unidade.

A narrativa

Confesso que, quase 20 anos depois da leitura, já não me recordo dos detalhes narrativos do livro original, pelo que me vou basear na narrativa apresentada na banda desenhada. A oscilação entre a personagem e a dissecação da distopia conseguia criar um ambiente arrepiante e claustrofóbico mas, também, criar paralelismos com outras narrativas políticas, quer históricas, quer actuais.

A manipulação da verdade, o nacionalismo criado frente a um inimigo comum, a alienação do outro (despido das suas características humanas e demonizado em intenções e personalidade), ou a suspensão do parecer crítico: vários destes elementos fazem parte de uma narrativa que podemos encontrar em ditaduras assumidas ou em regimes que para tal se pretendem dirigir.

A centralização numa personagem frágil, mas capaz de pensar, permite criar o elo de ligação com o leitor e, assim, ter mais impacto quando vamos percebendo como funciona esta sociedade.

A adaptação

Como livro de banda desenhada, esta adaptação funciona bem. A forma como as raras cores estão dispostas contribuem para criar um ambiente pesado e opressivo. Os desenhos não são excepcionais mas são competentes e acompanham bem a narrativa. Existe expressividade nas expressões e nas posturas, sem grande exagero, mas com alguma tragicidade.

Em termos narrativo, achei que esta adaptação era, nalgumas passagens, demasiado verbosa. Existem algumas páginas mais fluídas, mas outras possuem longos trechos de texto, ora com os pensamentos da personagem, ora com explicações da sociedade em que se encontra. Ainda que sejam movimentos interessantes, quebram um pouco o ritmo da leitura e retiram o foco ao formato de banda desenhada.

Opinião geral

Vários anos depois de lida a obra original, gostei de rever a história neste formato. A banda desenhada apresenta a história original conferindo-lhe maior fluidez numa adaptação competente, apesar dos trechos com demasiado texto. Denota-se cuidado com coerência das referências e destaca-se a qualidade da edição, em capa dura.

Esta edição de 1984 foi publicada em Portugal pela Alfaguara.