
Intrigante, consistente e imaginativa – Futurespotting é uma colectânea de histórias do escritor e tradutor italiano Francesco Verso que foi recentemente lançada em inglês pela Future Fiction, um projecto multicultural que publica histórias em vários meios e formatos. O conjunto tem histórias de vários géneros e tamanhos, existindo histórias muito curtas e outras bastante longas, mas revelando flexibilidade do autor em várias formas.
A maioria das histórias encontra-se acima da média. É normal que, dada a diversidade existam histórias que me tenham interessado mais do que outras, mas quase todas se encontram acima da média, sendo que algumas são, mesmo, excelentes.
As histórias e respectivo comentário
A colectânea abre com Fernando Morales, This is Your Death! centrando-se num homem velhote que, não tendo familiares nem amigos decide morrer de forma pública. Para tal, candidata-se à morte pública num programa televisivo. A forma de morrer é escolhida pela direcção depois de uma curta entrevista e de uma investigação sobre a vida da pessoa. Mas, neste caso, nem tudo vai correr conforme esperado pelo velhote e o resultado vai ser bastante diferente do esperado.
Este conto é uma boa abertura, apresentando-nos um sentido de humor peculiar mas final ácido. A escrita é bastante limpa de considerações, ou notas do autor, transparecendo a perspectiva da personagem principal, mas sem nos mostrar os seus verdadeiros pensamentos ou conhecimentos. É, sobretudo, um retorcer curioso dos programas televisivos que procuram usar pessoas comuns e impor-lhes um evento (como um casamento).
A segunda história, Midsummer Future leva-nos para um futuro distópico em que os relacionamentos amorosos são virtuais. Ninguém tem sexo presencial e a possibilidade de engravidar poderá levar a um castigo tenebroso. A história é contada na perspectiva de um rapaz que se apressa para chegar a casa, afim de ter relações virtuais com alguém que o fascina. Mas claro que terá de surgir algum imprevisto.
Segue-se Italianskij Tikaj Tikaj que nos leva a um cenário de guerra peculiar – por um lado seguimos um homem no terreno enquanto procura comida e abrigo entre os comuns, por outro percebemos existir tecnologia bastante actual (ou até ligeiramente futurista, com impressoras 3D e carne sintética). É uma história que não me convenceu totalmente ainda que tenha ficado com a sensação de que a guerra não muda, seja qual for a época.
Já 90 cents é uma história futurista, distópica e ligeiramente arrepiante que recorda um pesadelo que repete uma determinada parte, até incomodar o suficiente para se acordar aos gritos. Neste caso, a história leva-nos para uma sociedade em que quem detém uma dívida passa a habitar um determinado hotel, extensão directa do banco que usará os seus dados de consumo para o futuro. Um misto de controlo de informação e escravidão legalizada. É nestas circunstâncias que seguimos a personagem, que, tendo visitar a tia e acordado fazer-lhe um favor, acaba a fugir de um crime não cometido, e se depara com circunstâncias estranhas. Trata-se de uma história peculiar e curiosa, mais no tom negro da primeira, que quase parece inconsequente.

Flush apresenta-nos uma estranha experiência proporcionada por uma substância pouco descrita, enquanto The Green Ship nos leva para um futuro em que os países europeus fecharam literalmente as fronteiras do Mediterrânio, colocando barreiras ao longo das suas fronteiras marítimas. Felizmente, um grupo de refugiados é recolhido por um navio que tem outros objectivos e segue outro rumo, proporcionando uma alternativa – ainda assim, alguns refugiados escolhem voltar a fazer todo o caminho de novo para tentar entrar na Europa.
Este The Green Ship é uma história curiosa por vários motivos – por um lado remete-nos para o tema dos refugiados e das dificuldades com que se deparam, por outro, apresenta um percurso demasiado optimista e utópico, num percurso algo inverosímil. Ainda assim, não desgostei da história, dado que tem uma perspectiva interessante.
Em Celestial Formatting, uma pessoa encontra-se num meio digital onde tem um romance. A experiência é agradável, mas ambos sabem que no final tudo será apagado das suas memórias, ficando apenas as sensações. No entanto, um deles terá arranjado forma de contornar este problema. Já na, muito curta, história seguinte, AIdolon, a esperança média de vida é bastante mais longa. Ainda assim, acidentes podem acontecer a a morte de alguém traz rapidamente AI’s com pedidos pouco sensíveis às circunstâncias.
Awakenings, por sua vez, leva-nos a um curioso dilema ético – uma mulher acorda do coma, vários anos depois… mas quando chega a casa, descobre, no seu lugar, uma andróide, na qual a sua mente terá sido replicada. A mulher voltou, mas tanto a filha como o marido têm mais familiaridade com a andróide do que com ela…

The Assassin’s Level surpreende pela positiva pela forma como usa uma premissa banal e bastante usada, para tecer uma das histórias mais interessantes do conjunto. Nesta história, seguimos uma personagem num jogo de computador. Mas encontramos um misto – a personagem sabe que é uma construção, que sobe de nível e que com a subida de nível vêm alterações físicas na personagem, bem como poderes concedidos pelo jogo. As circunstâncias do jogo são usadas como cenário, como numa construção de ficção científica em que são dadas as circunstâncias de um mundo novo. A história é movimentada e bem construída.
O conjunto termina com outra história fabulosa, Two Worlds. Nesta história, a manipulação genética feita pelos humanos levou simultaneamente à extinção da espécie humana como a conhecemos, e ao surgir de duas novas espécies humanóides, melhor adaptadas às alterações climáticas. Surgiram assim, uma espécie voadora e uma espécie nadadora, respondendo ao subir do nível das águas e ao desaparecimento de uma série de habitats. Ao contrário de outras histórias do autor, este vai contendo partes informativas, intercaladas com a narrativa principal e que nos explicam alguns detalhes que levaram ao futuro que presenciamos.
Opinião à colectânea
A maioria das histórias (sobretudo as primeiras) possui uma estrutura mais ou menos comum. É-nos apresentada uma personagem e o seu dilema (ou circunstância), à qual se sucede uma acção ou decisão que terá consequências imprevistas e que levará a história num rumo diferente do esperado pelo autor. Este será o ponto de mais interesse da história, que termina pouco depois. Esta fórmula funciona, apesar de nem sempre se tornar cativante.
Esta estrutura é um pouco diferente nas duas últimas histórias (bem como em 90 cents), onde existem um maior foco na personagem principal e, consequentemente, maior caracterização. A sua extensão também é superior. Talvez estes elementos, em combinação, tenham determinado que são as minhas histórias favoritas da colectânea.
A história tem uma perspectiva simples. Segue (salvo raras excepções) uma única personagem mas sem nos revelar todo o seu conhecimento ou pensamento. Este formato funciona melhor numas histórias do que noutras – por um lado acompanhamos a personagem, mas por outro pode fazer com que seja possível entrar ou perceber o que a rodeia e as circunstâncias em que se encontra. Na última história, o autor contorna este elemento introduzindo secções explicativas que, sendo destacadas e curtas conseguem distanciar-se do sentimento infodump.
De forma genérica, denota-se um humor sarcástico, mas seco – sem floreados, mas também sem a brusquidão de uma punch line. Apesar de não desgostar deste estilo, faz com que, por vezes, se termine com alguma dúvida sobre o objectivo subentendido da narrativa.
Conclusão
Futurespotting é uma boa colectânea de contos. No entanto, a ordem pela qual foram colocados pode fazer esmorecer os leitores que não gostem do estilo inicial, perdendo as melhores histórias que se encontram, sobretudo, no final.