
D. Quixote de La Mancha é um clássico da literatura que vai sendo referido, imitado e actualizado ao longo de várias obras. Un Tal Cervantes não é a adaptação da vida do autor de D. Quixote de La Mancha, antes uma história que vai tendo algumas coincidências e paralelismos.



A história
Mike Cervantes regressa da Guerra do Afeganistão sem uma mão e com um evidente trauma de guerra. Inicialmente mantém-se isolado, tentando subsistir com menos uma mão, no meio da natureza, e com o conhecimento apenas de um amigo. Passado este momento inicial, Mike resolve-se a solicitar uma prótese da mão que lhe permita executar algumas tarefas essenciais e integrar-se na sociedade.
Mas as regras da guerra são mais absolutas e no meio da cidade, Mike decide-se a vingar-se de um banco que vai executar uma penhora sobre todos os bens do amigo. Este acto de vingança, dano de propriedade, vai ser o suficiente para ser julgado e preso, onde descobre a leitura e se tornar responsável pela biblioteca, funções que mimetiza uma vez cá fora. Mas, novamente, a realidade é matreira e as suas boas acções vão desafiar o sistema o suficiente para fazer dele um fugitivo.



Crítica
De muitas formas, esta história me recordou Quichotte de Salman Rushdie. Bem, a primeira é óbvia – ambos os livros se inspiraram na mesma obra clássica D. Quixote de la Mancha de Cervantes; e não tendo lido o clássico, se calhar as semelhanças derivam da inspiração no original. Em ambos os volumes parece existir um aumento de senialidade e de conflito – um ciclo crescente de tensão que recorda um comboio sem freio.
Un tal Cervantes inicia-se com um homem traumatizado e marcado pela Guerra, tanto física como psicologicamente. Este trauma fá-lo estar desadequado à sociedade que o rodeia – tal denota-se na forma como se decide a fazer vingança pela execução de bens do amigo. Mike é um homem honrado mas impulsivo, a quem falta a esperteza para agir sem afrontar a autoridade. A estreiteza de raciocínio leva-o a encarar situações difíceis e a tomar as decisões erradas sucessivamente, existindo um crescente, uma progressão, nas consequências destas decisões.
Mas este homem, apesar dos seus defeitos, tornou-se conhecedor dos clássicos e reconhece, ele próprio os paralelismos com a vida de Cervantes, e submete-se às semelhanças com D. Quichote, tecendo alguns paralelismos nas suas acções, de forma consciente, apesar da sua mente obtusa. Não é, assim, de estranhar que, após salvar um homem que não precisava de ser salvo, Cervantes vê o novo companheiro como um Sancho.
Apesar de beber inspiração para tecer uma história moderna, Un Tal Cervantes é uma narrativa com elementos próprios, usando a demanda sem travão de Mike para apontar alguns comentários à sociedade dos Estados Unidos da América. Por um lado, vemos como os que retornam da Guerra são tratados, sem grandes apoios. Apesar de receber uma prótese para a mão e a respectiva fisioterapia, Mike não parece receber o apoio psicológico de que necessita.
Quando, a seguir, enfrenta uma pena de prisão, esta parece desproporcional em relação ao cometido. Quando, após ter sido reintegrado na sociedade, lhe é ordenado fazer desaparecer alguns livros e o faz, as acusações são novamente exacerbadas, colocando-o num caminho sem retorno de perseguido perante os olhos da lei. Aliás, todo o esforço em torno da perseguição parece exagerado face às ofensas cometidas.
Mas não só. Os livros que é suposto fazer desaparecer são livros que foram proibidos pelas ideias que contém, conceito curioso numa biblioteca, com o qual Mike não se revê. Impulsivo e desagradado com a decisão, toma uma série de opções menos correctas, mas infelizmente confronta a instituição americana.
O resultado é curioso. Estamos a assistir a uma desgraça prestes a acontecer, e percebemos que esta história não pode acabar bem, mas, até simpatizamos com a personagem até determinado ponto – até determinadas acções nos fazerem perceber que Mike segue o caminho de um louco num meio de um episódio psicótico.
Visualmente, Un Tal Cervantes consegue ser interessante. Quando se detalham paisagens estas são espectaculares com detalhes perfeitos e perspectivas cativantes. Mas quando se acrescentam personagens, estas parecem destacar-se do que as rodeia pelo aspecto mais tosco, diria até um aspecto de esboço ou de imagem inacabada.



Conclusão
Un Tal Cervantes é uma leitura curiosa que mimetiza alguns aspectos da vida de Cervantes ou da sua obra clássica para criar uma história mais moderna com algumas críticas à sociedade americana, enquanto apresenta uma persoangem obtusa que vai criando as suas próprias ilusões, apesar de ter consciência das coincidências narrativas da sua própria vida. A narrativa apresenta um crescente em tensão que nos leva a progredir na história e acompanhando as loucuras cada vez mais graves desta personagem.


