A humanidade colonizou outros planetas mas, ao invés de vermos realizada a ideia de grandiosidade e de concretização de um grande feito, vê-se um arrasador sentimento de depressão e nostalgia que abala os colonos. Deixando as hortas por cultivar e tudo o que os rodeia num enorme estado de negligência, estes colonos passam todo o tempo possível a ingerir uma droga, Can-D (soa como candy, em português, doce) que lhes fornece uma experiência bastante vivida na Terra, num corpo imaginário  – uma experiência que pode ser melhorada pela aquisição de miniaturas de objectos terrestres.

Barney Mayerson é um dos mais poderosos precognitivos, um homem caracterizado por uma grande dose de arrogância, ainda marcado (sem que o admita) pela separação com a ex-mulher. Conhecemos-lo num dia particular, acordando de uma grande ressaca depois de ter dormido com a sua nova colega de trabalho, uma pessoa com potencial para se tornar tão boa ou melhor do que ele.

O trabalho de ambos (Barney Mayerson e nova colega) envolve escolher em que objectos (como peças de arte, por exemplo) se deve investir na miniaturização, prevendo o seu sucesso futuro entre os colonos. Mas não só. Prevê-se a morte de milionário Palmer Eldritch às mãos de Leo Bulero, o dono das empresas que fabrica Can-D e as respectivas miniaturas. Mas nem o próprio sabe, à data da previsão, o motivo que o poderá levar a tal acto.

Os três estigmas de Palmer Eldritch parece uma paródia às histórias de ficção científica de conquista no espaço, esperançadas e românticas, aspirando a grandes feitos e grandes aventuras. Se por um lado temos personagens que parecem estereótipos, como a boazona com elevadas capacidades que opta por seduzir e manipular para obter o que pretende, ou o homem inseguro que tem elevadas aspirações que ele próprio boicota inconscientemente; por outro temos uma sucessão de situações grandiosas que revelam uma espécie degenerada em colapso.

A experiência extra-corporal fornecida pela Can-D é tão forte que leva, até os inicialmente mais incrédulos, a praticar uma estranha religião centrada na droga e nas respectivas miniaturas – miniaturas que conferem o efeito de novidade e aumentam a experiência onde todos os homens são Ken e todas as mulheres são Barbie, numa parceria perfeita que os colonos encarnam, em simultâneo, como experiência social. Engraçado constatar que esta não é a única história em que Dick transforma a nostalgia por um mundo conhecido em obsessão por reproduzir essa realidade recorrendo a bonecas e brincadeiras que simulam a vida perdida como uma lembrança de perfeita diversão).

Esta obsessão, concretizada por ocasionalmente por escassas horas, está agora em risco de ser transformada em algo mais. Palmer Eldritch regressa ao sistema solar como um novo ser, carregando consigo uma versão melhorada da droga que permitirá uma experiência melhorada no espaço e no tempo. Até que ponto se trata apenas de uma simulação, ou até que ponto é que esta simulação é controlada pela própria pessoa são as grandes questões que envolvem esta droga – será uma nova forma de se viver eternamente? E afinal, o que é viver eternamente? É manter uma memória corrompida no mundo real ou capaz de viver uma simulação sem fim?

Palmer Eldritch é, em suma, um monstro. Aparentemente humano, omnipresente, capaz de apresentar em todos os espaços e tempos e em nenhum, existindo e corrompendo, talvez como parasita, talvez como ser que já transcendeu a loucura. Ou será Palmer Eldritch apenas um reflexo exagerado daquilo que já existia, não tendo, por si, verdadeira importância?

Mas Os três estigmas de Palmer Eldritch não retrata apenas um conjunto de colonos deprimidos e entregues às drogas por nostalgia e depressão. Entre psicólogos portáteis que são, na prática, inteligências artificiais dentro de malas e outras tecnologias interessantes, encontramos a capacidade de induzir a evolução física e intelectual – um processo caro que nem sempre induz o efeito desejado e pode embrutecer o indivíduo tratado.

Não esperem que a “evolução induzida” produza o indivíduo perfeito tal como foi publicitado por uma série de facções raciais e racistas. A evolução é, claro, no sentido da melhor adaptação e produz algo que visualmente poderia ser bastante desagradável, não fosse ser socialmente reconhecido como sendo um processo restrito aos mais ricos e bem relacionados. Afinal, a beleza é algo relativo e se o aspecto expressa um determinado estatuto … bem, não é isso mesmo que se pretende?

Em suma. O que é Os três estigmas de Palmer Eldritch? Um livro bastante estranho, a roçar vários tipos de psicoses e doenças mentais, que demonstra um futuro negro de forma irónica e inteligente, uma paródia de simulações que se entrelaçam até deixar de se perceber onde começa a realidade e termina a falsidade.

Depois de publicado na Europa-América e na Editorial Presença, a edição que se encontra disponível actualmente no mercado português é a da Relógio d’Água.