Joe Sacco é um jornalista de guerra conhecido pelas suas adaptações à banda desenhada das relações entre palestinianos e israelistas ou na guerra da Bósnia. Em Gorazde mostra como se deslocou à cidade com o mesmo nome após a criação da via azul que permitiu a entrada de alguns bens essenciais na cidade.

O que encontra é uma comunidade parada no tempo, isolada por causa da guerra, que regrediu em termos civilizacionais. Sem electricidade. Sem água. Sem educação. Sem objectivos de um futuro. Os civis, por sua vez, encontram-se traumatizados, tanto pelas mortes causadas pela guerra, como pela traição dos que antes julgavam seus vizinhos e amigos.

O livro vai apresentando as conversas ou entrevistas que o autor vai tendo com os habitantes que restam em Gorazde. Não só. Também o seu quotidiano enquanto convive com estas pessoas e as vê recuperar, lentamente a normalidade. Retrato a retrato percebemos que ainda que Gorazde tenha grupos populacionais muito diferentes, antes da guerra, estes grupos pareciam viver em paz e harmonia. Existiam amigos entre religiões e origens diferentes. Mas o clima de suspeita permanente, o medo do outro que difere de nós, levou a que a guerra tivesse fortes consequências locais e se perpetuassem os actos mais vis entre aqueles que antes eram companheiros de quotidiano.

O que mudou? A política. Mais especificamente uma política de nacionalismo que incitou ao extremismo. Por um lado um grupo fortalece-se, por outro, outros grupos populacionais começam a sentir-se estranhos no local que sempre conheceram. Começam a perceber-se divisões no comércio local, sendo que alguns locais só são frequentados por uma parcela da população.

Gorazde acaba cercada. Sem infraestruturas básicas. E com fome. É possível recuperar a comida que cai da ajuda humanitária, mas para tal é necessário andar quilómetros entre a neve e muitos falecem na tentativa. Paralelamente, as ruas não são seguras – é muito possível levar-se um tiro a atravessar a estrada. Só com a intervenção de outras nações será possível recuperar a cidade do colapso.

Esta é a perspectiva dos acontecimentos. Joe Sacco cita estes acontecimentso, mas dá a Gorazde a perspectiva de cada pessoa. As duras viagens pela neve onde tantos morrem. A corrida a meio da noite sob saraivadas de tiros. Ver familiares e amigos a sucumbir. Encontrar corpos torturados. Fugir sem saber se se sobrevive. Ser levado para uma ponte onde se decapitam, todas as noites, dezenas de civis, só pela diversão.

Todos estes episódios fortes contrastam com a Gorazde que Joe Sacco encontra. A guerra parou. Mas os habitantes continuam sem grandes perspectivas de futuro. Alguns não irão recuperar dos traumas. A juventude perdeu anos de escolaridade. Não existem trabalhos nem comércio. Existe um género de sobrevivência dormente, uma inquietação camuflada pelo retorno de alguma normalidade que faz com que estas pessoas, tão cedo, não voltem a confiar nos que os rodeiam.

Gorazde é um retrato pesado. Não podia deixar do ser. Se uma guerra das trincheiras é visceral pela forma como envia dezenas de homens para as suas mortes, uma guerra numa cidade consegue ser ainda mais horrível por atingir civis e quebrar todo o quotidiano de um grupo de pessoas isoladas, amedrontadas e com poucos recursos – é mais do que guerra. É terrorismo.

Gorazde foi publicado pela Levoir em parceria com o jornal Público.