Eis uma série fenomenal de Jeff Lemire! As sociedades humanas estão em colapso com o surgir de uma doença misteriosa e extremamente letal. A origem desconhece-se. Vários cientistas procuram as causas mas não a encontram. Paralelamente, todas as crianças que começam a nascer mostram algumas características de animais – desde hastes a focinhos de porco, passando por asas, penas ou escamas. Os dois fenómenos estão interligados, mas não da forma que se julga.

O primeiro volume apresenta-nos um rapaz nascido após a epidemia que tem hastes de veado. Protegido pelo pai, vive no meio dos bosques, isolado e com medo da restante civilização humana – decerto seria caçado caso soubessem da sua existência, tal como todas as outras crianças que nasceram entretanto.

Após a morte do pai, o rapaz arrisca por novos territórios, sendo encontrado por um homem que o faz acreditar num paraíso para rapazes como ele – um género de santuário onde poderia viver em paz entre semelhantes. Este mesmo homem, uma pessoa que se revela de moral recta e correcta, tem, para o rapaz outros objectivos – algo que não parece coerente na personagem, mas que iremos compreender.

Sem estragar os desenvolvimentos do primeiro volume, posso revelar que o homem e o rapaz se irão reencontrar em liberdade, e, conjuntamente com outros sobreviventes (humanos e meio humanos) irão procurar a origem da epidemia. Mas esta busca não será directa. Por um lado irão encontrar psicopatas pelo caminho, por outro, são perseguidos por um grupo armado com objectivos dúbios sob uma falsa religiosidade.

O percurso será longo e carregado de percalços. Perdem-se amigos e encontram-se outros, numa epopeia que mostra como o ser humano se tem tornado inimigo da natureza e de si mesmo, levado pelo egoísmo e pela ganância. Mas se estes dois elementos levam a alguns humanos e traçarem um percurso negativo e maldoso, é sobretudo o medo daquilo que é diferente que justifica a acção de outras pessoas.

Com o fechar da história nestes dois livros, Jeff Lemire constrói uma epopeia com uma mitologia muito própria, ainda que, inicialmente, pareça a história de um rapaz perdido e rejeitado pela humanidade. Cruzando a história principal com outras linhas narrativas (com um visual muito próprio) desenvolve-se uma história maior do que as próprias personagens.

Esta capacidade de criar uma história mítica de dimensões epopeicas é apenas um dos traços que distingue esta série. Tal como noutras histórias, Jeff Lemire consegue criar personagens que se distinguem pelas imperfeições e por tomarem as decisões erradas – características que ajudam o leitor a criar empatia.

Ainda, denota-se a utilização de uma estratégia que podemos ver noutros livros do autor (como na série Descender), com a centralização da narrativa numa personagem muito jovem e inocente, que acredita no melhor de todos os que encontra. Esta característica justifica laços entre personagens pouco prováveis e um certo proteccionismo em relação à criança – não é de estranhar que um adulto possa se assumir como guarda-costas de outra personagem, se se tratar de uma criança (ou de algo com características infantis).

Para além destas características habituais em Jeff Lemire que me levam a considerar um dos meus autores favoritos, a temática também me atrai particularmente. A narrativa debruça-se sobre o apocalipse da espécie humana, o colapsar da sociedade pela abrupta diminuição de papéis fundamentais e pelo medo que ganha espaço na mente dos humanos e o leva a acções impensáveis – é neste ambiente que proliferam os psicopatas, os megalómanos e os que aspiram a falsos cargos de autoridade.

Esta combinação de elementos faz Sweet Tooth uma série extraordinária, que recomendo mesmo aos que não gostam do estilo gráfico de Jeff Lemire.