Os livros sobre livros de Alberto Manguel já são bem conhecidos. Livros sobre bibliotecas, perdidas, arrumadas, públicas e privadas. Livros sobre lugares fantásticos e inexistentes, mas que persistem na imaginação dos homens. Livros sobre livros – os livros da infância, do crescimento, os livros que nunca se esquecem. Neste caso, trata-se de um livro sobre monstros literários. Alguns de menção espectável, outros inesperados, que surgem com uma reviravolta do espelho.

Entre as referências aos monstros, justificando a sua alusão, o autor insere referências bem reais, por vezes políticas, usando as personagens como forma de estabelecer uma crítica social. Nem o Super-homem escapa. Uma das referências mais interessantes, será, sem dúvida a Job:

Mas, na vida real, as coisas são um tanto diferentes. Job continua a sofrer sem recompensa à vista. A questão é: quanto tempo aguentará Job? Quantas coisas mais terão de lhe ser retiradas para ele reconhecer que esses actos de injustiça são absolutamente inaceitáveis? Em que momento perguntará, como diria um advogado romano, cui bono, quem beneficia de tudo isto? Quem ficou com o seu gado, as suas terras, o fruto do seu trabalho? Quem é responsável pela morte dos seus filhos? Quando é que um homem tem a obrigação de se defender contras as decisões arbitárias de quem está no poder? De quantos mais direitos terá Job de ser privado para dizer «basta»?

Esta alusão a Job e à forma como foi exercido o poder de Deus sobre a sua existência é, para mim, uma referência óbvia à sociedade actual e à diferença entre quem detém o poder e quem se curva perante a execução de leis pouco igualitárias. Qual o limite? Acrescento, apenas, uma ideia menos positiva que as intenções do autor – “Pão e circo”.

A dada altura, todos nós já fomos chamados a uma adega para testemunhar algo supostamente iminente e lastimar uma tragédia que ainda não aconteceu, em vez de remover a picareta que um dia talvez ameace a vida de uma criança inexistente. Há uma diferença entre uma preocupação verdadeira pelo estado de coisas causado pela corrupção, a ganância e a sede de violência, e a sensação artificial de fatalidade iminente pela qual ninguém é responsabilizado. (…)

O pânico diário provocado por uma enxurrada de «notícias falsas» e teorias da conspiração é extremamente útil para quem ocupa o poder, porque o medo permite tomar medidas e emitir decretos que nunca passariam em tempos mais sensatos. «Porque é que nenhum economista previu isto?», é a pergunta que todas as Elsas fazem quando o noticiário da noite anuncia as nuvens negras da desgraça. Depois exige-se que estes façam portentosas proclamações ilusórias. (…)

Que acontecerá se, como Elsa, insistirmos na dita esperteza? O que acontecerá, se abdicarmos da reflexão sadia e nos deixarmos arrastar para um estado de pânico que nos faz uma lavagem ao cérebro e nos deixa à mercê de desmandos políticos e teorias da conspiração, incapazes de agir como indivíduos pensantes, já sem saber quem verdadeiramente somos?

Neste caso, usa-se um conto de fadas para dissertar sobre a forma como as notícias são geradas para manipular as populações, levando-as a focarem-se no medo para justificar qualquer medida de controlo que, noutra situação qualquer, não seria admissível.

De história em história, Alberto Manguel vai discorrendo sobre as figuras literárias, estabelecendo comentários políticos, alguns mais óbvios do que outros. O resultado é um livro interessante sob diferentes perspectivas em que temos, sem dúvida, a imediata em que se fala de livros, de histórias e de personagens, mas também uma abordagem mais pessoal, mais subversiva e menos óbvia.

Este livro foi publicado em Portugal pela Tinta da China.